A possibilidade de diálogo entre prosa e poesia foi o tema em torno do qual três escritores de diferentes gerações e vertentes criativas se encontraram na última quinta-feira, segundo dia da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) – que acaba amanhã –, com mediação do critico literário Miguel Conde.
O tom grave e algo solene da fala da jornalista, escritora e documentarista gaúcha Eliane Brum soou em certa medida dissonante em relação ao teor irreverente e lúdico da participação do comediante, poeta e cronista carioca Gregorio Duvivier, representante da literatura pop contemporânea. Ou de Charles Peixoto, também do Rio, um dos bastiões da poesia marginal dos anos 1970 e terceiro vértice dessa triangulação improvável, desigual, mas nem por isso menos interessante.
Eliane, ao contrário de seus companheiros, leu seu texto de apresentação, bastante elaborado, no qual contou que sempre se sentiu mais próxima de prosa, com a qual seu trabalho jornalístico conversa intensamente. Frisou, no entanto, que descobriu a poesia nas falas dos personagens anônimos e invisíveis pelos quais optou desde o início de sua trajetória de repórter. “Encontrei essa poesia nas muitas línguas portuguesas que ouvi nos vários Brasis que percorri, e ela invadiu meus textos”, disse a escritora, que lançou, recentemente, o memorialístico Meus Desacontecimentos (Leya), do qual leu um trecho, assim como de seu primeiro romance, Uma Duas (Leya).
Millôr e Sarney
Duvivier, por sua vez, optou pelo improviso. Utilizou-o em um primeiro momento para fazer uma pequena ode a Millôr Fernandes, que, para ele, soube como poucos fazer humor sem perder de vista a humanidade, ou o afeto, dois traços sem os quais, o engraçado, disse ele, transforma-se em grosseria. E admitiu se arrepender de um texto sobre o ex-presidente José Sarney em que abusou do direito de ser cruel. “Embora ele merecesse, ninguém merece.”
Ao ler poemas de Ligue os Pontos (Companhia das Letras) e crônicas de seu próximo livro, Put Some Farofa, que deve sair no fim do ano, Duvivier fez a plateia gargalhar. Seu humor rápido e sua performance enquanto lia acabaram entrando em sintonia com o desbunde dos poemas de Charles Peixoto, lidos com empolgação.
Peixoto, um dos autores do remake da novela O Rebu, atualmente no ar, se disse feliz de estar na Flip com uma poesia que já foi chamada por críticos de “lixeratura”. O sucesso de Toda Poesia, antologia do contemporâneo Paulo Leminski , que vendeu mais de 100 mil exemplares, afirmou o escritor, foi “um milagre”. “O Leminski deve ter feito algo lá em cima.”
Precoces
Debate frio entre Eleanor Catton e Jöel Dicker faz curador pedir “sangue”
É um tanto irônico que a mesa que reuniu na última quinta-feira os dois autores mais jovens da Flip 2014, a neozelandesa Eleanor Catton e o suiço Joël Dicker, tenha sido tão sisuda. Ao ponto de o curador do evento, Paulo Werneck, ter encaminhado ao mediador José Luiz Passos, escritor e professor de Literatura na Universidade da Califórnia, um bilhete com os seguintes dizeres: “Zé, a mesa está um pouco fria, eu quero ver sangue”. Não sem alguma razão. Afinal, o tema da mesa era “Fabulação e Mistério.”
Diante da mensagem recebida, o mediador tentou injetar mais ânimo à conversa. Quis saber de ambos como lidavam com o fato de terem alcançado não apenas sucesso, mas reconhecimento da crítica tão cedo.
Eleanor venceu, com seu segundo livro, Os Luminares (Biblioteca Azul), o Man Booker Prize, uma das principais láureas da literatura em língua inglesa. Dicker, por sua vez, ganhou o prêmio de melhor romance da Academia Francesa de Letras, por A Verdade sobre o Caso Harry Quebert. Enquanto ela disse que reconhecimento, quando precoce demais, pode levar à “complacência e à acomodação”, ele optou por uma resposta mais populista. “Mais recompensador do que ganhar prêmios é visitar colégios em bairros pobres e ouvir os professores falarem: ‘Temos essas crianças sem esperanças e que não costumam ler nenhum livro. Mas, acredite ou não, alguns leram, adoraram e querem escrever também’.”
Eleanor foi mais fundo. “Se você não está mais lutando para ser reconhecido, isso pode ser muito perigoso, é uma coisa que tem sempre de tratar com muito cuidado.”
Os Luminares, com suas mais de 800 páginas, se passa em um vilarejo na Ilha do Sul da Nova Zelândia, em 1866, num período em que a região, antes inóspita, passa por uma profunda transformação com a descoberta de ouro.
Em A Verdade sobre o Caso Harry Quebert, de Dicker, o protagonista é Marcus Goldman, espécie de alter ego do autor: escritor com menos de 30 anos, que alcançou o estrelato com um único romance, um fenômeno de vendas.
TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE NO JORNAL GAZETA DO POVO EM 01/08/2014.
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