Há um truque interessante em Morte em Suas Mãos (editora Todavia, com tradução de Bruna Cobalchini Mattos), romance de Ottessa Moshfegh, que nos é revelado pela sinopse: uma mulher de 72 anos, que vive isolada numa cabana em uma cidade meio deserta nos Estados Unidos, encontra um dia um bilhete que diz: “Seu nome era Magda. Ninguém jamais vai saber quem a matou. Não fui eu. Aqui está seu corpo”.
O resumo parece apelar às tantas mentes hoje sedentas por histórias de crimes (o gênero true crime, por exemplo, nunca foi tão popular). O truque trazido aqui é a expectativa de que o livro de Ottessa nos entregue um thriller, uma busca pelo desvendamento de um mistério – ainda que a viúva Vesta Gul tenha encontrado esse bilhete, não há corpo próximo a ele.
Mas Ottessa, de alguma forma, é brincalhona, e Morte em Suas Mãos não se trata exatamente de um romance policial. Quem conhece a obra dessa autora americana vai notar que ela não se afasta aqui de seu tema central: a abordagem de mulheres solitárias que procuram maneiras de lidar com seu vazio existencial. Em Meu Ano de Descanso e Relaxamento, era uma moça que se entupia de remédios para tentar apagar por um ano inteiro para não lidar com suas questões. Em Meu Nome Era Eileen, há uma mulher que relembra seu passado de abandono emocional ao lado do pai alcoólatra.
Vesta Gul, diferente das outras protagonistas, já é uma senhora. Seu marido, Walter, morreu há pouco, e ela vendeu a casa gigante em que ambos moravam para se mudar para a pequena Levant, onde divide seus dias com o seu cachorro, Charlie, em uma existência que, aos olhares externos – não necessariamente ao de Vesta – é enfadonha e repetitiva.
Não por acaso, quando Charlie encontra o bilhete misterioso, o mistério parece aguçar algo que está dentro de Vesta, e ela resolve se entregar a essa trama. A partir daí, de forma crescente, Morte em Suas Mãos se torna muito mais sobre as possibilidades imaginárias de uma mulher sozinha do que sobre um fato externo.
Assim, Magda (nome estranho, talvez estrangeiro, como intui Vesta) se torna quase como uma desculpa para que os poderes de criatividade dessa senhora se aticem, criando uma trama maluca em que aparecem outros personagens, como Blake, Shirley e até uma espécie de demônio chamado Denu. Com esse romance original, Ottessa Moshfegh parece ter elevado a premissa da invenção de amigos imaginários a novos patamares.
História de um relacionamento abusivo e uma mulher solitária
A narrativa astuta dessa escritora talentosa faz com que, aos poucos, o leitor vá se situando de que há mais coisa escondida na história de Vesta Gul do que ela mesma sabe.
A narrativa astuta dessa escritora talentosa faz com que, aos poucos, o leitor vá se situando de que há mais coisa escondida na história de Vesta Gul do que ela mesma sabe. A idosa é uma mulher sozinha e recém tornada viúva após a morte de seu marido, um respeitável médico e professor universitário, vitimado por um câncer nos testículos.
Aos 72 anos, Vesta se vê, pela primeira vez em muito tempo, totalmente sozinha para tomar as suas próprias decisões. De alguma forma, é como se ela fosse criança de novo, ou então uma adolescente que sai pela primeira vez de casa e lida com uma conquistada liberdade. Ela pode agora trocar um casarão que não a agradava por uma cabana pequena e sem muitos bens, e comer bagels sem graça pelo prazer de não ter que cozinhar.
A graça de Morte em Suas Mãos é notar a gradativa mudança de ângulo na narrativa biográfica de Vesta à medida em que ela se adentra no mistério de Magda. Walter, o marido morto, é figura sempre presente nas memórias da viúva, que o conheceu ainda bem jovem. No começo do livro, ela o tem em alta consideração e sente a sua falta: era um homem protetor, que trazia flores para a esposa e construiu uma aposentadoria para garantir a velhice dos dois.
Mas, aos poucos, Ottessa Moshfegh nos faz acompanhar a consciência de Vesta Gul emergindo e revelando seus verdadeiros sentimentos em relação a Walter. O homem protetor é alguém que isola a mulher e não a deixa fazer quase nada. As flores são dadas sob a premissa de que “custaram o olho da cara”. O dinheiro é armazenado a partir de uma vida sovina em que se economiza com tudo. E Walter, conforme vamos descobrindo, não é tão nobre quanto assim nos parecia inicialmente.
A narrativa pouco confiável de Vesta Gul é revelada aos poucos, desnudando uma relação desequilibrada de poder que se repete na que mantém com seu amado cão. De maneira perspicaz, Ottessa descreve assim uma cena em que Vesta é atacada por Charlie: “essas coisas acontecem com alguns animais, disse a mim mesma. Eles se zangam com os donos”. Morte em Suas Mãos acerta aos nos entregar algo que não prometeu.
MORTE EM SUAS MÃOS | Ottessa Moshfegh
Editora: Todavia;
Tradução: Bruna Cobalchini Mattos;
Tamanho: 198 págs.;
Lançamento: Abril, 2023.
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