O escritor chileno Roberto Bolaño (1953 – 2003) foi um verdadeiro revolucionário. Atento à política, ele foi um ferrenho defensor da democracia e das liberdades individuais. Antes de escrever obras canônicas da literatura latino-americana, como 2666 (2004), Chamadas Telefônicas (1997) e Os Detetives Selvagens (1998), Bolaño viajou para o México e para a Espanha, retornando ao seu país em 1973 para lutar a favor de Salvador Allende (1908 – 1973), mas acabou preso quando Augusto Pinochet (1915 – 2006) assumiu o governo após um golpe militar.
No andar do tempo, a visão que o escritor tinha do presidente deposto foi se dissipando até se transformar em uma leve névoa de sua juventude. Em sua última entrevista, ao ser questionado pela jornalista Mónica Maristain sobre Allende, Bolaño declarou acidamente que “quem tem o poder nada sabe de literatura, pois só os interessa o poder” e, por isso, pouco lhe importava participar da política.
Aos 19 anos, o escritor já se considerava trotskista e sua prisão, que durou oito dias, ajudou a aumentar o mito ao seu redor. Para o professor universitário e escritor Benedito Costa Neto, a relação entre Bolaño e seus anseios políticos nunca foi pacífica. “Sabemos que, pelas próprias palavras dele, aqui e ali coletadas, foi um militante da esquerda, mas não sabemos até que ponto ele militou”, comenta. Porém, Bolaño nunca foi um sujeito “do contra”, por assim dizer. Para Costa Neto, o escritor estava inserido naquilo que se pode chamar de “esquerda embasada”, ou seja, existia uma doutrina ideológica por trás das intenções do autor de Putas Assassinas (2001).
Ainda que a política não fosse a parte central de sua obra, Bolaño a adicionava em pequenas doses em quase todos os seus livros. Em Detetives Selvagens, por exemplo, o grupo dos poetas do realismo visceral é uma alusão direta ao infrarrealismo, movimento criado pelo chileno e outros poetas durante sua passagem pelo México e que tinha na figura de Octavio Paz (1914 – 1998) a visão dos valores perpetrados pelo status quo. No livro, Arturo Belano e Ulises Lima representam a literatura esquerdista, anticapitalista e recheada de ideais. Ironicamente, Bolaño adotaria em 1993 a escrita de seus contos e romances em um velho computador.
Na opinião de Benedito Costa Neto, a melhor maneira de compreender a política dentro da obra de Bolaño é a leitura de Noturno do Chile (2000), considerada por ele como “obra capital para entender essa visão politizada de mundo”.
Esse conjunto caleidoscópico de fatores faz de Bolaño um escritor rebelde, mas a sua rebeldia é um deleite à escrita, dialogando, antes de tudo, com o seu tempo.
Homem universal
Bolaño foi também um homem errante. Suas viagens pela América Latina e pela Europa despertaram nele um sentimento inequívoco de desterritorialização. “Minha única pátria são meus filhos”, declarou certa vez. Em 2003, poucas semanas antes de morrer, declarou que se sentia “apenas latino-americano” e que não pertencia a nenhum país específico. Por motivos diferentes, é possível dizer que Bolaño, assim como o escritor argentino Jorge Luis Borges (1899 – 1986), é um homem universal.
Os dias de andanças produziram em Bolaño uma capacidade ímpar de criar personagens. Mesmo obcecado por personagens-investigadores, a natureza de suas crias é mais diversa. O investigador do conto “El Policía de las ratas”, de El Gaucho Insufrible (2003), em nada lembra o clima policialesco de Monsieur Pain (1984), por exemplo. “Isso devia exigir dele uma energia e um esforço incomuns. Poucos escritores conseguiram esse feito de forma coerente e consistente”, define Costa Neto, que o campara a nomes como Honoré de Balzac (1799 – 1850), Thomas Mann (1875 – 1955) e Liev Tolstói (1828 – 1910).
Esse conjunto caleidoscópico de fatores faz de Bolaño um escritor rebelde, mas a sua rebeldia é um deleite à escrita, dialogando, antes de tudo, com o seu tempo.
Capitalismo selvagem
O seu posicionamento político refletiria também na relação com outros escritores, principalmente os latino-americanos. Como bem lembra Benedito, Bolaño não aceitava que a literatura se transfigurasse em um produto puro e simples ou em uma moeda de troca. “Em seu pensamento crítico, não via com bons olhos autores ‘vendidos’ ao sistema, de literatura fácil, como é o caso de Isabel Allende. Podemos dizer que tinha uma atitude de esquerda nesse pensamento também. Afinal, ele foi um grande crítico do capitalismo selvagem e do capital como norte das coisas da vida.”
Na contramão da lógica, Bolaño admirava publicamente Borges, que durante anos defendeu o peronismo na Argentina e tinha um posicionamento claramente de direita.
Não escaparam a sua fúria o colombiano Gabriel García Márquez (1927 – 2014), a quem disse ser um homem extraordinário por ter conhecido tantos presidentes; o conterrâneo Pablo Neruda (1904 – 1973) também foi vítima de sua língua ferina: “dois bons livros e nada mais”, disse Bolaño. Mário Vargas Llosa, Nobel de 2010, e até Paulo Coelho foram alvejados pelo chileno. “Ele estava imerso em sua busca por uma literatura nada fácil, alheia ao desejo do mercado editorial por escritas superficiais e palatáveis em excesso, em sua crítica contundente sobre a escrita pobre em língua espanhola no terceiro e último quartéis do século XX”, avalia Costa Neto.
Na contramão da lógica, Bolaño admirava publicamente Borges, que durante anos defendeu o peronismo na Argentina e tinha um posicionamento claramente de direita.
Boom latino-americano
Ainda que o boom latino-americano tenha sido a mais importante vanguarda das Américas, o escritor não se considerava herdeiro do movimento. “Não me sinto herdeiro de maneira alguma. Mesmo que estivesse morrendo de fome, não aceitaria esmola do boom, ainda que existam muitos escritores bons e que os releio de vez em quando, como Cortázar e Bioy”, declarou o autor de Estrela Distante (1996), livro que marca a saída de Bolãno das “sombras” e também o início da amizade com Jorge Herralde, publisher e dono da Anagrama, editora espanhola que (re)lançaria a obra do chileno.
Para fugir da esmola, Bolaño recorreu aos prêmios literários. Sua caça por premiações é relatada no primeiro conto de Chamadas Telefônicas, “Sensini”, e oferece ao leitor uma ideia das privações passadas pelo escritor. “Participava de todo tipo de concursos literários para ganhar dinheiro. Portanto, enviava meus poemas e meus dois únicos romances (à época) a qualquer concurso que aparecesse. Digamos que foi uma atividade alimentícia”, relembrou Bolaño em uma entrevista em 2001.
Essa espécie de rebeldia durou até o seu último suspiro. Antes de morrer, Bolaño deixou obras prontas e aconselhou seu editor e sua família sobre como proceder. Entre as suas preocupações estava o sustento de seus filhos, Lautaro e Alexandra, que, como bons “filhos de seu pai”, subverteram as ordens e não realizaram os desejos literários de Bolaño, como transformar 2666 em uma pentalogia. Ainda bem.
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