Poderia ter sido apenas outro intervalo de um caso importante na Rússia do Século XIX, no edifício do Foro. Os juízes estavam reunidos na sala, um queria defender sua visão do caso importante, outro só reclamava da incompetência dos tribunais, e outro parecia que não estava nem aí e apenas corria os olhos pelo jornal. “- Senhores, morreu Ivan Ilitch.”
Oh não. E a discussão sobre A Morte de Ivan Ilitch, novela de Lev Tolstói (ou Liev Tolstói, como é o escritor também é conhecido), começa. Você o visitou? Ele morava longe demais. E a família? Sobrou Prascóvia Fiódorovna e uma parte da prole ainda viva, as escassas posses do Ivan servirão à enlutada, ao menos para ela se virar por um tempo. E claro que algum dos colegas do falecido já pensam nas questões práticas: quem poderia ser indicado para o cargo vazio, se indicarem aquele senhor talvez eu possa receber determinado cargo, o que aumenta a renda em tantos rublos, me permite isso e aquilo e um papo que reduz o defunto a menos que uma conversa secundária.
Afinal, mesmo com todos os anos dedicados à pátria nos foros, sobrevivendo às disputas internas da classe enquanto ascendia (muito) lentamente no ramo, parece que Ivan Ilitch não deixou boas marcas. Não que tenha brigado com todos da categoria, ele até se esforçou para se dar bem no jogo do quem indica, mas após a leitura de um pouco de sua carreira, é como se Ilitch não tivesse criado uma identidade ou feito uma ação memorável, apenas ocupou um cargo aí por anos a fio porque não tinha onde ficar e nem como ser demitido, se tirassem isso de suas costas não sobraria nada.
A novela nos conta da sua juventude, sua luta enquanto estudante de Direito, o casório, quando tinha menos que nada; e é justo esse nada que incomoda.
É fato que subiu. A novela nos conta da sua juventude, sua luta enquanto estudante de Direito, o casório, quando tinha menos que nada; e é justo esse nada que incomoda. Não pela miséria material de seus anos iniciais, superada de algum jeito, ainda que seu resultado seja questionável, pois Ivan teimava em querer deixar a casa de acordo com um padrão “elevado”, seja lá o que essa palavra subjetiva significasse na cabeça dele. Isso é apenas parte da vida que ele teve, pois o casamento com a dona Prascóvia transformou-se em um acordo unilateral – dele, claro, que se cansou rápido daquilo que nem conheceu direito: filhos, filhas, os humores da senhora esposa. “Ah, rale-se, vou trabalhar mais ou me divertir no jogo”, Ilitch se acomoda enquanto envelhece mal e deixa a relação tão automática e conveniente para si como buscou fazer com todos os setores de sua vida.
No decorrer da narrativa, alguém pode se perguntar onde o Ivan Ilitch bateu a nobre cabeça russa. Lê-se sobre o escasso progresso de sua vida, os padrões elevados que nunca bastam e o trato robótico dele com o mundo, e pode se perguntar de onde tanta idiotice, tantas auto imposições fúteis na tentativa de parecer o que não era. E também se a sua morte possui significado em um mundo com o qual estabeleceu uma tolerância mútua, se vai além dos resmungos de colegas pouco comovidos durante um intervalo.