Michel Houellebecq é um escritor na corda bamba. Entre o niilismo e uma ironia fina, a sua literatura sempre navega pelos caminhos espinhosos do homem médio contemporâneo e por um senso acachapante de realidade. Em Serotonina, seu romance mais recente, parte de uma desilusão amorosa – e moral – para construir uma jornada de autodestruição e fuga.
Florent-Claude Labrouste é um homem de meia idade, consumido pelos antidepressivos que toma, vivendo em uma montanha-russa emocional e que acaba solapado por uma avalanche de desgostos. Por meio do seu anti-herói, Houellebecq constrói um painel perspicaz dos nossos tempos. Labrouste é, afinal, o arquétipo do sujeito líquido. Com uma desenvoltura social canhestra e um talento gigantesco para encontrar abismos, o protagonista se movimenta em um terreno sombrio e movediço, capaz de arrastá-lo ainda mais para o fundo. Mergulhado em uma espécie de egoísmo – mas que beira a autodefesa –, Florent se percebe fragilizado ao encontrar a namorada em vídeos pornográficos.
Tentando se desvencilhar de sua companheira, Yuzu, Florent simplesmente a abandona da noite para o dia e percorre a França à caça de suas ex-namoradas para entender sua própria história. Só encontra um pouco de luz – uma luz difusa, é claro – quando visita um amigo, um aristocrata falido e nas raias do desespero. Serotonina é um retrato corajoso e polêmico de uma classe média esgotada e devastada pelos seus próprios pecados. Houellebecq se apropria da realidade para criar uma ficção poderosa e incômoda, mas cujo centro é, justamente, a crueza e a perversão – temas que percorrem todo o corpus do escritor.
É interessante pensar Houellebecq, antes de tudo, como um leitor do mundo. E Isso explica um pouco o porquê sua literatura gera tanto desconforto e retaliação.
Labrouste é um personagem beckettiano: está esperando por um milagre que ele mesmo sabe que não virá. Porém, é também um Zelling às avessas, alguém que jamais aceita se moldar ao ambiente, que não permite ser contaminado pelo outro e que, por consequência, o restringe de qualquer empatia – inclusive por si mesmo e pelo seu nome.
“(…) não só acho ridícula a combinação Florent-Claude, como cada um de seus elementos me desagrada muito, em suma considero meu nome um erro garrafal. Florent é suave demais, muito parecido com o feminino Florence, num sentido quase andrógino. Não combina em absoluto com meu rosto de traços enérgicos, agressivos em certos ângulos, que muitas vezes foi considerado viril (pelo menos por certas mulheres) e nunca, mas nunca mesmo, um rosto de pederasta botticelliano. Quanto a Claude nem se fala, esse nome me faz pensar de imediato nas Claudettes, e quando o ouço me vem instantaneamente à memória a imagem horrenda de um vídeo vintage de Claude François passando em looping numa noitada de veados velhos.”
Sob uma frivolidade superficial – de sua obsessão por champanhes, hotéis, cigarros e afins –, Florent é um homem complexo e amedrontado, incapaz de lidar com aquilo que a vida lhe dá. Ou melhor, incapaz de lidar com a vida que erigiu.
Iconoclasta
A obra de Michel Houellebecq vai na contramão do bom-mocismo da literatura. Prefere seguir a tradição de outros “pervertidos” como o Marquês de Sade, Raymond Radiguet ou mesmo Flaubert. O que emparelha Houellebecq aos três autores clássicos é exatamente o desejo – e a ambição – iconoclasta. É por meio da destruição e da ruptura que todos atingiram alguma excelência artística, que formaram uma obra que fala por si.
Com Extension du domaine de la lutte (1994), seu romance de estreia, pincelava tudo aquilo que não fazia com a poesia que escrevia, mas que só conseguiria transformar em um produto realmente sólido em As Partículas Elementares (1998) – que articula um diálogo interessante com Gêmeos: mórbida semelhança (1990), longa de David Cronenberg.
Cinismo
Com uma agudeza sem igual, toca em feridas abertas e que, ao andar da carruagem, não parecem cicatrizar tão cedo. Crítico contumaz do islamismo – que chama de a religião mais burra do mundo –, Houellebecq carrega pechas que, em uma leitura mais atenta, caem por terra. Por isso, é interessante pensar Houellebecq, antes de tudo, como um leitor do mundo. E Isso explica um pouco o porquê sua literatura gera tanto desconforto e retaliação.
Em certa medida, o cinismo que impõe à sua escrita – algo bastante kafkiano – cria uma espécie de distanciamento que permite uma análise mais fria e certeira. Se em Plataforma (2001) – que abre como uma alusão à cena inicial d’O Estrangeiro, de Camus – adiantou os atentados a Bali, em outubro 2002, e o massacre na redação do jornal Charlie Hebdo, 13 anos mais tarde, foi com Submissão (2015) que atingiu o ponto máximo de sua capacidade de previsão.
Por sinal, o retrato que faz, em Submissão, de uma França ultraconservadora – governada por um partido muçulmano e que derruba sem pensar duas vezes a laicidade do estado – causou frisson ao prever a guinada do mundo à extrema-direita. Esse cenário de devastação muito se assemelha ao atual governo federal brasileiro, em que líderes e representantes de igrejas neopentecostais ocupam importantes cargos públicos e ameaçam a democracia ao entrincheirar a constituição por meio de dogmas religiosos.
Sem exagero, Serotonina é o resultado do exercício estético extenso e denso, cujo legado é o retrato acima de qualquer convenção social. Houellebecq, por sinal, não se impõe limites ou obstáculos para a sua escolha de vocabulários e abordagens. A literatura é o meio e o fim. E não existem concessões.
SEROTONINA | Michel Houellebecq
Editora: Alfaguara;
Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht;
Tamanho: 240 págs.;
Lançamento: Julho, 2019.
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