Alice Caymmi vira e mexe tem que lidar com a força que seu sobrenome carrega: neta de Dorival, filha de Danilo, sobrinha de Nana; inúmeros epítetos sempre aparecem ligados ao seu nome. Porém seu novo disco traz Alice em letras neon em sua capa, com o Caymmi como se estivesse apagado, mais uma vez reafirmando que ela é um talento poderoso que não precisa repetir os passos dados por sua família.
Seu segundo disco, Rainha dos Raios, foi lançado em 2014 pela Joia Moderna. Bem recebido pela crítica e pelo público, o disco virou trilha de novelas e séries na Globo e levou Alice a assinar um contrato com a Universal. Primeiro disco dentro de uma grande gravadora, Alice é uma aposta mais comercial da cantora, que traz participações de Pabllo Vittar, Rincon Sapiência e Danilo Caymmi.
No início de 2017, Alice havia lançado “Louca”, faixa originalmente de Talía, gravada aqui numa versão em português feita pela banda brega Kitara. O single, produzido por João Brasil, era bem eletrônico e dançante, dando pistas das pesquisas de Alice em torno desse formato mais pop e dançante que veio a se tornar o novo disco.

Alice, o álbum, foi produzido ao lado de Barbara Ohanna e navega por diferentes vertentes da EDM, trazendo batidas fortes e versos curtos e rápidos, em canções aparentemente simples, de fácil comunicação. São canções românticas e apaixonadas, porém há um tema de libertação, uma tensão quase espiritual sob a qual Alice cria um universo que destrói quaisquer amarras.
Nessa perspectiva de libertação, Alice escreveu logo ao lançar o disco: “Quero deixar muito claro pra todas as mulheres: as pessoas vão tentar te amarrar. As pessoas vão tentar fazer gaslighting. Vão tentar te diminuir. Vão tentar acabar com você. Tentar acabar com a sua voz. Tentar acabar com a sua carreira. Com tudo o que você tem pra dizer, mas você é maior do que isso. Eu sou maior do que isso. Nós todas somos maiores do que isso. Por mais que o mercado seja horrível e opressor, e muitas pessoas desvalorizem mulheres desse tamanho, nós não vamos morrer, nem muito menos parar de produzir.”
A partir dessa perspectiva da própria artista, é possível olhar essas canções por esse lado de um voz que tenta a todo momento se reafirmar, dizer pra si mesma “eu não sou louca” e se eu quiser, somente assim, eu serei louca, à minha maneira. A pessoa que surge nas canções é sempre alguém em busca dessa força própria e interior, seja na superação de um amor, como em “Inocente” (parceria de Alice com Ana Carolina), ou na solidão implicada em ser seu próprio par, em “Sozinha” (de Gorky, Pablo Bispo, Arthur Marques e Maffalda).
A partir dessa perspectiva da própria artista, é possível olhar essas canções por esse lado de um voz que tenta a todo momento se reafirmar, dizer pra si mesma “eu não sou louca” e se eu quiser, somente assim, eu serei louca, à minha maneira.
Alice tem momentos mais românticos, como na poderosa “A Estação” (de Carlinhos Rufino), mas nos ganha logo de cara com seus momentos mais dançantes, como na direta e grudenta “Vin” (de Alice, Barbara, Pablo Bispo e Sergio Santos) ou na faixa final “Eu te avisei” (de Alice, Barbara e Pablo Bispo), com participação de Pabllo Vittar. A parceria com a cantora drag, aliás, foi um encontro e tanto: Alice é conhecida por sua voz marcante e intensa, já Pabllo tem sido constantemente apedrejada por sua voz aguda. Juntas, elas constroem uma canção forte, que une as duas artistas de forma cativante e dá uma banana para quem quiser reclamar.
Além do trabalho musical de Alice, construído aqui ao lado de Barbara Ohana, destaca-se também o cuidado estético que cerca o disco: a capa traz Alice emulando Ofélia, da peça Hamlet, de Shakespeare, submersa e rodeada de flores; a cantora ainda aparece amarrada segundo as tradições do Shibari, técnica de amarração japonesa, associada geralmente a práticas de BDSM. Além disso, no YouTube, foram lançados vídeos para cada uma das faixas do disco, no que Barbara Ohana chama de music portraits, proposta realizada por ela e João Paulo Cuenca. Dentre os vídeos, destaca-se o de “Spiritual”, que conta com Danilo Caymmi, que toca flauta na faixa; pai e filha juntos, rindo um para o outro, num belo momento.
No final das contas, Alice marca uma importante virada na carreira de Alice Caymmi, pois a define como uma importante força da música pop nacional, isso sem, em nenhum momento, abrir mão de sua força estética e criativa enquanto artista. Um disco para se ouvir bem alto no repeat e cantar junto!