O Brasil é o país do sincretismo por excelência. Por aqui, quase tudo extravasa um sentido unívoco e expande-se para a pluralidade possibilitando infindáveis hibridismos e ressignificações. Na música, talvez o estilo que mais experimentou a ultrapassagem de limites e foi contaminado por outras influências contrastantes foi paradoxalmente o rock. Em seu bojo, o rock n’ roll representa liberdade, entretanto, em sua história, foram constantemente rechaçadas tentativas mais ousadas de diálogo com outras linguagens e a busca pela pureza do rock foi eminente em diversos momentos de sua história.
Em nosso país, tal empreitada, felizmente, não obteve sucesso. Os Mutantes, no final da década de 1970, misturavam guitarras distorcidas com sertanejo, baião e tantos outros ritmos regionais em um caldeirão musical criativo e inovador. Na mesma linha seguiu Raul Seixas, que encontrou no improvável abalroamento entre rock n’ roll e sonoridades nordestinas, a fórmula perfeita que embasou canções de toda a sua rica trajetória.
Contemporâneos a Os Mutantes, os Novos Baianos experimentaram e difundiram a mistura entre samba e rock que culminou na obra-prima Acabou Chorare, de 1972. Vinte anos depois, misturando também rock (bem mais pesado) e samba, Rogério Skylab, embalado por intrincadas e complexas melodias, iniciou sua carreira vociferando polêmicas letras e esdrúxulas e escatológicas poesias urbanas.
O Brasil, em sua complexidade e diversidade cultural, cujas amarras narrativas (e nativas) ainda estão bem soltas, longe de estabilizarem-se ou fincarem raízes, possibilitou que suas tantas manifestações e linguagens se entrecruzassem de forma fecunda e indissociável com o rock.
Ainda na década de 1970, Sá, Rodrix & Guarabyra foram os precursores do chamado rock rural, em que a brasilidade naturalmente infiltrou-se nas influências roqueiras do trio, como no refrão de “Hoje ainda é dia de rock”: “Eu descobri olhando o milho verde(eu descobri ouvindo a mula preta)/ Mãe e pai que hoje ainda é dia de rock”.
O Brasil, em sua complexidade e diversidade cultural, cujas amarras narrativas (e nativas) ainda estão bem soltas, longe de estabilizarem-se ou fincarem raízes, possibilitou que suas tantas manifestações e linguagens se entrecruzassem de forma fecunda e indissociável com o rock. Entenda, não é que por aqui, duas ou mais linguagens se completem, mas antes que se fundem, se contaminam e perdem suas bordas, tornando-se apenas uma, cujos limites não podem mais ser definidos ou rastreáveis.
Assim foi também com o movimento manguebeat, que fundiu o maracatu (típico ritmo pernambucano) com o rock, o hip hop, a música eletrônica e o funk. Os dois álbuns de Chico Science e Nação Zumbi, Da lama ao caos (1994) e Afrociberdelia (1996), ilustram brilhantemente tal fato, tornando-se ambos uma espécie de cartilha do movimento, ao condensar as principais características do manguebeat e apresentar, de uma certa forma, as diretrizes para se fazer tal tipo de música.
Na década de 1990, os Raimundos misturaram hardcore com forró e letras sacanas e fizeram a cabeça de muitos adolescentes com a puberdade gritante. Na década seguinte, o Matanza misturou rock pesado com o autêntico country americano, provando que no Brasil também há espaço para hibridismos de linguagens distantes, e que estas são universais, ou seja, para a música, a fronteira é, de fato, ilusória.
Até o heavy metal nacional não consegue estagnar-se. O disco Holy land (1996) do Angra mistura suas influências mais pesadas e releituras de música clássica muito bem executadas com ritmos nacionais e aborda conceitualmente a chegada dos portugueses no Brasil. O Sepultura, sob muitas críticas dos mais extremistas e elogios (merecidos) dos mais flexíveis trouxe diversos elementos da cultura indígena em Roots, lançado no mesmo ano.
Estes exemplos mais óbvios apenas corroboram nossa tese de que a mistura rítmica é natural em nossa música e demonstra que até o rock, que possui fãs mais inflexíveis e radicais, não permite arraigar-se em uma essência imutável. Ao contrário, nas terras tupiniquins, ele é absorvido, recriado e regurgitado em uma nova faceta que ainda é rock, mas ao mesmo tempo, não é mais. O rock, no Brasil, é antropofágico.
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