Maio de 1987, Rio de Janeiro. Estava na cidade para assistir ao show do Echo and the Bunnymen, que pela primeira vez passava pelo Brasil. Não havia chegado um dia antes para pegar uma praia. O objetivo era o de uma adolescente padrão: o caminho do hotel Meridien, em Copacabana, onde a banda estava hospedada.
Les Pattinson, baixista do Echo, era o ser mais acessível no meio de certa tensão. Boa gente a ponto de pedir ajuda para comprar sapatos. Durante a conversa, cujo esforço foi hercúleo para entender o inglês do rapaz, Les pergunta a alguém que passa ao seu lado “Anton, quer ir comprar sapatos?” Assustada, eu pergunto: “Ele é Anton Corbijn? – Yeah.” Anton naquela época já era “o fotógrafo” e ali estava ele, em carne e muito osso. Magro, tímido e vestido em preto branco, como nas suas fotografias. Depois do susto, fiquei sabendo que Anton viera com a banda para gravar o clipe de “The Game”.
Anton Corbjin (pronuncia-se ɑntɔŋ kɔrˈbɛi̯n) nasceu em Strijen, uma ilha no sul da Holanda. De família protestante (seu pai, tios e avôs foram pastores), nunca foi pressionado para seguir o mesmo caminho. Sua avó dizia que “a natureza da pessoa é mais importante do que a profissão que escolhe.” Liberado do compromisso religioso, Anton pôde dedicar-se ao que mais amava quando jovem – ouvir música e fotografar. Se o amor pela música havia começado pelos Beatles, nada mais certo do que ir embora para a Inglaterra. Era meados dos anos 1970.
Pense em uma fotografia de algum músico ou banda, de uma capa de álbum, de uma revista, de um videoclipe. De algo importante para você. É bem provável que você tenha pensado em Anton Corbijn. Ele já deu magia à obra de muitos artistas. Só para ficar com dois exemplos: ao U2, desde 1984; ao Depeche Mode, desde 1986. Martin Gore até hoje agradece a Anton por ter tirado o DM do status de apenas uma banda pop, tornando-os uma banda cult. Mas para muitos Anton só ficou mais conhecido por conta de Control (2007), filme dirigido por ele e que conta a história de Ian Curtis.
Anton sempre viveu em casas anexas a igrejas. Lugares solitários. Nesses lugares é que ele começou a interagir com as imagens ao redor. Por meio delas imaginava outra vida. A vida que, aos 17 anos, começou a dar à música. E por isso há muito de Anton em suas fotografias. Bono Vox diz que Anton forja imagens que são do próprio fotógrafo.
Apesar de respeitar o ofício do pai, Anton não gostava da mentalidade de igreja, da premissa de que um pastor deveria carregar o mundo nas costas. Por conta da falta de imagens na Igreja Reformada Holandesa (todas as paredes eram brancas), Anton sempre gostou de ícones. Em um breve olhar pelo seu portfólio podemos ver uma cruz talhada em madeira, uma asa de anjo, um crucifixo.
Em recente entrevista, Anton foi indagado sobre por que prefere fotografar em preto e branco – ‘Porque fotos em cores são a realidade. Mas o preto e branco é a minha realidade’.
Mas engana-se quem pensa que só há melancolia e solidão na obra de Anton. Também há humor e ironia. As provas estão em vídeos como “It’s no good”, do Depeche Mode (em que Anton até faz uma “ponta”), que é puro brilho e deboche. Em “Seven Seas”, do Echo and the Bunnymen, Anton colocou de tudo – peixes, pinguins, mocinhas e mocinhos. Quando a Warner, gravadora da banda na época, leu o script do vídeo, disse que não bancaria a ideia ridícula de Anton e dos homens coelhos. A banda resolveu produzir do próprio bolso. Depois mostraram à gravadora. O reembolso veio no dia seguinte.
Em recente entrevista, Anton foi indagado sobre por que prefere fotografar em preto e branco – “Porque fotos em cores são a realidade. Mas o preto e branco é a minha realidade”. “Heart-Shaped Box”, do Nirvana, é um caso à parte. Anton foi quem dirigiu o vídeo, este que seria o último da banda. Ele gravou em cores, depois transferiu as imagens para preto e branco e em seguida todas as cenas foram pintadas à mão, o que deu o olhar technicolor ao material. Além de defender o preto e o branco, Anton também se sente mais à vontade com fotos polaroides e máquinas Leica.
Há tanta coisa linda feita por Anton espalhada pela rede, pelas prateleiras. Além dos videoclipes, há mais de uma dezena de livros com suas fotografias, exposições, filmes que dirigiu (além de “Control”, ele já rodou mais dois. Um deles, “O Americano”, estrelado por George Clooney, em 2010). E também o imperdível documentário “Inside Out”, dirigido por Klaartje Quirijns. É um mergulho na vida e na obra de Anton. E para matar a saudade de Lou Reed ofereço esta cena.
Nesse mesmo documentário Anton diz que seu trabalho não é perfeito, porque a perfeição tira o suspiro do que se faz. Para ele fotografar é um misto de insegurança, ambição e visão das coisas. Acho que é muito mais do que isso. O que ele faz é desenhar a música e a vida de outra forma. Em suas fotografias não se vê somente o glamour e o ego. Vê-se aura da solidão. Em silêncio, Anton dialoga com as imagens. Vê ângulos, cores, espaços, luzes, onde não vemos. Enxerga o que vai além da música. E assim a completa. Porque Anton está nos detalhes.
Todas as fotos que ilustram o texto de hoje (exceto a da capa e a em cores) fazem parte do livro Famouz, publicado em 1989.
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