Montar listas costuma ser um exercício complicado. Ainda que existam algumas unanimidades, seria muito difícil montar uma seleção que fosse ao encontro do gosto público.
Pensando nisso, A Escotilha reuniu sua equipe e convidou alguns jornalistas especializados para apontarem, em suas opiniões, qual canção melhor representa o ano de 2016. A única regra era que ela estivesse em um disco lançado entre 1º de janeiro e 30 de novembro deste ano. Você pode ouvir as músicas clicando no nome das faixas.
Também pedimos aos jornalistas que apontassem um artista como “Personalidade da Música” em 2016, independente de ter lançado um disco ou não. Abaixo você acompanha a finíssima seleção deste conturbado 2016.
MARCELO COSTA (Scream & Yell)
“Meio Bauhaus, Meio Inverno”, Wander Wildner – É um clichê, mas é sincero: é difícil escolher uma música só de A Vida é Uma Toalha Estendida no Varal, 10º álbum de Wander Wildner, e um de seus melhores trabalhos. Podia ser “Sempre Que Posso, Eu Fujo do Inverno” (da boa frase “eu aprendi a ignorar as minhas dúvidas / o que não entendo eu decidi deixar pra trás”), a arrepiante “Com Lineker e com Desapego”, a brilhante “Amigo” (“Meu amigo transcenda o preciosismo cultural / Ninguém comove em rede social / Com fotos de comida / Com poses da sua vida que finges viver”), “Script” (com participação deliciosa de Lulina) ou a genial “Pensando em Ratos”. Tem que escolher uma? Ok. “Meio Bauhaus, Meio Inverno”, que combina com esse ano macabro em que (sobre)vivemos uma “vida de merda, de porra nenhuma, medíocre, meio rock and roll moderno, completo e sem sal”. Completo e sem sal.

Wander Wildner é um herói, mas não o herói tradicional do mundo moderno, construído por factoides estilhaçados de uma grande mídia ávida por audiência e dinheiro público. Não, Wander é daqueles heróis antigos, tão poderoso quanto rabugento, tão genial quanto arisco. E antissocial, um adjetivo que poderia soar crudelíssimo para viciados em redes sociais, mas que cai bem em caminhoneiros de séries televisivas, porque eles sabem que a verdade está no âmago, lá fundo da carne sangrando, nas relações humanas verdadeiras, e não numa foto do Instagram, num textão do Facebook ou num tweet engraçadinho que vira meme. Wander Wildner é um herói à moda antiga que dedica suas manhãs para pensar no passado enquanto Bukowski pensa em ratos. Foda-se o mundo moderno.
BRUNO SANCHES (Escuta Essa)
“Fill in the Blank“, Car Seat Headrest – 2016 será lembrado (infelizmente) como um ano em que o conservadorismo avançou algumas casas. Em razão disso, “Fill In the Blank”, música do Car Seat Headrest, consegue definir um pouco esse sentimento de inanição e prostração diante dos fatos, atrocidades. É o lamento dos desiludidos, o hino do não pertencimento e do completo niilismo. Que em 2017 possamos juntar os cacos e criar uma música que melhor nos defina.

Dev Hynes não é dos mais conhecidos. Porém, sua presença é justificada: ele conseguiu emplacar dois ábuns em boa parte das listas de melhores do ano; utilizando-se do pseudônimo Blood Orange, o artista lançou Freetown Sound, disco que narra as experiências de Dev com homofobia, racismo e violência; e, como produtor, Dev Hynes participou do conceituadíssimo álbum de Solange Knowles, A Seat At the Table, que também trata de temas espinhosos e necessários. Dois álbuns políticos e esteticamente impecáveis, que certamente marcarão a memória não só cultural, mas também racial e discussão de gênero.
ABONICO SMITH (Mondo Bacana)
The Hope Six Demolition Project, de PJ Harvey – Depois de cutucar as feridas da podre trajetória histórica da Grã-Bretanha em Let England Shake, PJ Harvey levou meia década para soltar outro grande míssil de igualmente afiado teor politizado. Viajou para capital americana Washington e ainda deu umas bandas pelo Afeganistão e Kosovo. No início do ano, convocou os fãs para pagarem ingresso e verem ela e seus músicos conceberem por quatro semanas suas crônicas de viagem em forma de versos poéticos e musicados. Até que em abril ela soltou as onze faixas do álbum The Hope Six Demolition Project, no qual analisa as injustiças provocadas por guerras e desigualdades sociais nestas três localidades. O conjunto das canções é bastante forte e fica quase impossível destacar uma delas em especial, sobretudo porque PJ mostra que, através das linhas tortas da História, a humanidade vê escritos capítulos muito tristes e dolorosos. Quem viveu até o fim deste ano para testemunhar tudo o que passamos ao longo da temporada sabe muito bem que 2016 ainda pode render inspiração para outras profundas obras artísticas como este último disco de Polly Jean.

PJ Harvey tem baixa estrutura (1,62m) e corpo franzino. Contudo, quando junta as iniciais de seu nome com o sobrenome o assume o alterego de PJ Harvey a mocinha aparentemente frágil e de aparência inocente transforma-se em um grande vulcão prestes a provocar poderosas erupções a todo momento. Solta o vozeirão, aciona as distorções da guitarra, multiplica-se por vários outros instrumentos, escreve letras de alto teor sócio-político e transforma-se em um gigante da música que há quase trinta anos ininterruptos vem presenteando os admiradores dos bons sons com um disco melhor do que o outro.
LUCAS PARAIZO (A Escotilha)
“What It Means“, Drive-By Truckers – “Nós queremos as nossas verdades justas e balanceadas, desde que as nossas noções estejam dentro delas. Não há luz do sol em nossas bundas e as nossas cabeças estão presas lá”. Em um ano que pareceu não terminar nunca, com socos no estômago semanais e uma série de desilusões na sociedade em geral, a autocrítica necessária acabou se sobressaindo. Entender os próprios privilégios, entender como a falta de noções políticas de nós mesmos por anos gerou o que vemos hoje, entender que, sim, erramos. No ano de Trump eleito nos Estados Unidos, com a questão racial mais em alta do que nunca e com a violência policial em xeque, foi uma banda de homens brancos de meia-idade do Sul que conseguiu fazer a autocrítica que um país precisava – e que vale para todos os outros. Em “What it Means”, o Drive-By Truckers criou o pedido de desculpas justo aos jovens negros mortos nos EUA.

Nick Cave, beirando os 60 anos, lembrou a todos nós em 2016 como a música tem um significado acima de qualquer outra coisa. Como a música é catártica, como ela vem de dentro e como ela é uma expressão emocional das mais puras que existem. Em um ano em que perdemos Bowie e Cohen, Cave lançou um disco e um documentário sobre o luto (motivado pela perda do filho) e nos fez lidar um pouco melhor com a mortalidade. É necessário saber a importância da arte em nossas vidas, e Nick Cave nos ajuda a lembrar disso.
ALEJANDRO MERCADO (A Escotilha)
“Mosquito“, Sabotage – “Depois que o homem inventou o revólver / Todos corremos perigo / Onde o preto é bandido / O playboy queima índio e esbanja o prazer / Periferia é motivo, sem trabalho ou estudo, botar pra fuder”. Esses versos têm 13 anos, mas foram lançados apenas em 2016. Muita gente não entendeu o porquê do alarde com o lançamento do disco de um rapper falecido há tantos anos. O “Maestro do Canão” é um dos maiores artistas da música recente no Brasil, mas antes disso, Sabotage era negro e periférico. Com um 2016 particularmente desastroso para o país, em que ser negro e periférico tornou-se um “crime institucionalizado”, a pergunta que todos se faziam parece ecoar mais e mais: e se o Sabotage estivesse aqui? “Mosquito”, que contou com a participação do Tropkillaz, é um retrato bem atual deste país em que estar à margem é quase uma condição natural.

Elza Soares teve o melhor disco de 2015, mas foi em 2016 que A Mulher do Fim do Mundo colheu seus melhores frutos, garantindo o merecido reconhecimento para o melhor disco brasileiro do século XXI. Elza rodou o país e o mundo cantando um disco cheio de vitalidade e coragem; cantou sobre a negritude, sobre as mulheres. Elza Soares é um dos maiores espetáculos da Terra, e se vencer o APCA em 2015 não foi o suficiente, 2016 trouxe o Prêmio da Música Brasileira, Prêmio Multishow de Música Brasileira e o Grammy. Elza chegou à Europa como rainha da música: ingressos esgotados em todas as apresentações. Fecha 2016 coroada com o reconhecimento mundial e integrando a lista do The New York Times de melhores discos do ano.