Não me lembro exatamente quando, mas sei que foi numa dessas tardes perdidas entre canais da TV a cabo que topei com uma série que falava sobre o rock nacional, também conhecido como BRock. Vid, um dos vocalistas que passou pela Sangue da Cidade, dava entrevista para um jornalista que, se bem me lembro, era da Rede Globo. O tal jornalista questionava Vid sobre uma suposta falta de coesão no disco do grupo, sucesso daquele início de anos 80. A resposta inusitada, diga-se, foi algo do tipo “eu não faço coesão, faço rock e com tesão”.
Essa entrevista foi fundamental para minha compreensão da importância de um disco coeso sob o ponto de vista musical. A coesão está diretamente relacionada à narrativa da obra, tal qual um livro ou um filme, possuindo começo, meio e fim. E talvez seja isso que eu sinta falta em Fome, disco da Cadillac Dinossauros lançado em 2015.
É bom frisar: a banda é muito competente no palco (venceram o FBI – Festival de Bandas Independentes no Rio de Janeiro e o DMX New Talent) e, fatiado, o disco é bom. O conjunto como obra é que acaba prejudicado pelas inúmeras camadas de referências e gêneros pelos quais a Cadillac Dinossauros viaja ao longo de Fome. Sobra tesão (o que é importantíssimo), mas falta coesão (tão importante quanto).
Os bons riffs, o groove e o peso com que o disco inicia em “Pobre Demência” recebem uma estranha pincelada, algo parecido com uma levada entre o Ska e o Reggae, na faixa seguinte. Após a introdução, “Quem Disse Que Você é Legal” mostra a que veio, ainda que o bridge utilizando o wah-wah torne a descaracterizar a canção mais adiante.
“Fora do Trilho”, “Arielígina” e “Baby Levante” resgatam o mojo de bons grupos do BRock oitentista. Um ménage entre o groove do Sangue da Cidade, a malandragem da Cinema a Dois e o trabalho vocal da Degradée, incluindo pequenas pitadas do charme desinteressado dessa geração do rock nacional. Mas mesmo nelas, que estão aparentemente próximas, falta liga, um denominador comum.
Essa ausência fica mais clara na soul “Tudo é Pouco”. David Barros demonstra toda sua capacidade vocal, fazendo constantes variações sem tropeçar ou desafinar. Acontece é que, chegando à metade do disco, as várias nuances trabalhadas pela Cadillac deixam o álbum confuso, ou, como disse lá no início, sem coesão. O ouvinte é levado ao clímax e, de repente, jogado numa canção mais intimista, quase como numa esquizofrenia sonora.
Acontece é que, chegando à metade do disco, as várias nuances trabalhadas pela Cadillac deixam o álbum confuso.
A homônima “Fome” e a barão-vermelho-vem-ao-paraná “Tocando o Terror” são as duas melhores canções do álbum, musical e liricamente falando. O conjunto dos riffs, as linhas de baixo e a condução da bateria estão exemplares, como no restante do disco, mas aqui elas assumem o que, creio eu, seja o mais próximo da verdadeira “cara” que David Barros, Hugo Alex e Billy Joy queriam dar à banda de Ponta Grossa.
A curiosa “Ei Rapaz” e sua psicodelia é arrebatada por uma guitarra distorcida e um baixo tunado, uma boa demonstração de que a cozinha da Cadillac Dinossauros é competente em oferecer peso e suingue. O disco encerra com a dupla “Não Sei” e “Divino x Olívio”, arrematando um trabalho que não preza pela unidade, mas é rico individualmente.
Talvez com uma ordem diferente na sequência das músicas Fome fizesse mais sentido, mas feito como está parece mais com uma coletânea e menos como um disco afirmador de uma fase do grupo. No final, o álbum é bom, mas deixa a sensação de que poderia ser muito melhor.