É emblemático quando passa a se falar bastante no mundo da música sobre pessoas como Max Martin. O sueco cabeludo nerd da produção musical que é responsável por pasteurizar quase toda a obra pop de sucesso dos últimos anos, rei do pop inofensivo e chiclete.
Da música como fórmula matemática para tocar bonito no rádio e fazer você mexer o ombrinho sem pensar muito no que está ouvindo. Da música como meio de agradar fã, não como expressão pessoal. Talvez por estarmos tão treinados a ouvir isso, há um certo estranhamento rolando em parte da pop music atualmente.
Chamam Lemonade, o novo disco da Beyoncé, de conceitual ou de experimental, mas ele está longe disso. Ele é apenas torto, cheio de referências diferentes que fazem sentido quando não passam por um processo de adequação radio friendly. Rihanna já fez isso esse ano com ANTI e Kanye West fez pela segunda vez com The Life of Pablo.
Beyoncé, no entanto, é há alguns anos sinônimo maior de diva pop para os fãs e respeitada pelos menos interessados no gênero desde o disco homônimo de 2013. Não é a toa que Lemonade causou estranhamento, afinal, ele é, de longe, a produção menos “fácil” da cantora até hoje. Ele vai tocar pouco nas baladas e nem todo mundo vai dançar ouvindo. Como expressão artística, pelo outro lado, é importante.
Lemonade tem dois pontos claros. Um é o lado pessoal que Beyoncé escancara ao falar de empoderamento e, especialmente, infidelidade. O outro caminha de mãos dadas com uma obra e ressalta como To Pimp a Butterfly (2015) é, provavelmente, o disco mais relevante dos últimos anos.
A parte racial forte de Lemonade (presente até no título, referência a uma antiga crença dos escravos) vem batendo o pé atrás da trilha aberta por Kendrick Lamar em seu grandioso disco do ano passado. O hino negro “Freedom”, que vem na parte final do álbum de Beyoncé, traz a primeira colaboração dela com Kendrick e é uma clara sequência dos temas de TPAB, inclusive no vídeo que a acompanha, estrelado por mães de negros assassinados nos Estados Unidos.
Chamam Lemonade de conceitual ou de experimental, mas ele está longe disso. Ele é apenas torto, cheio de referências diferentes que fazem sentido quando não passam por um processo de adequação radio friendly.
O disco tem sido vendido como uma obra quase focada no tema racial, o que não é verdade. Lemonade tem momentos fortes sobre a questão que claramente permeia a obra, mas fala-se muito mais sobre relacionamentos e fidelidade aqui. No entanto, os dois assuntos se juntam na narrativa de girl power. Beyoncé se põe num pedestal para convocar as mulheres em busca de mais liberdade – tanto sentimental quanto política. A parte visual do disco deixa isso ainda mais claro, já que a obra é pensada como um projeto audiovisual em que todo o disco é acompanhado de um filme curto.
Chama a atenção que o disco por várias vezes foge da mistura pop e R&B. O britânico James Blake tem peso importante nas baladas do disco (“Pray You Catch Me”, “Sandcastles” e “Forward”), tanto com a sua produção quanto com a voz frágil. Isso gera um confronto com a parte mais agressiva do disco, como na cheia de raiva “Don’t Hurt Yourself”, marcada pela guitarra de Jack White. Há, ainda, a referência ao Yeah Yeah Yeah’s em “Hold Up” com o clássico indie “wait, they don’t love you like I love you”; o sample de OutKast em “All Night”, o country de “Daddy Issues” e, para honrar as raízes, o R&B de “6 Inch” com The Weeknd.
Ao tratar sobre todo o clima de infidelidade aparentemente presente no relacionamento de Beyoncé e Jay-Z, o disco dá ao mundo uma fofoca para falar, mas usa isso como abre-alas para um tema maior. A cantora claramente quis dar um tempo na produção inofensiva e fez algo diferente e forte – musicalmente e socialmente. É relevante acima de dançante (não que essa característica não tenha seu valor). Pode ser difícil de engolir, mas é uma boa chacoalhada nos padrões ver o disco de uma estrela pop enfrentar violência policial e racial, dar voz, poder e empoderar a mulher.
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