Viver da própria arte não é algo fácil. Ser reconhecido em sua área de atuação demanda muito esforço do artista, além da renda gerada nem sempre ser suficiente para seu sustento. No caso dos músicos, umas das alternativas é a arrecadação de direitos autorais pela reprodução de suas músicas em locais públicos e privados. Contudo, mesmo isso é algo que tem suas complicações.
O Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) é o órgão responsável pela arrecadação e distribuição dos direitos autorais. Composto por sete associações administradoras (que podem ser vistas aqui), o Ecad tem o objetivo de centralizar essa arrecadação e distribuir os direitos musicais oriundos de execução pública, atuando no país inteiro.
Ou seja, se você é um músico – aqui se insere não só os intérpretes, como os compositores, editoras musicais e produtores fonográficos – e está filiado a uma dessas sete associações que compõem o Ecad, você deve receber uma quantia em dinheiro se alguma música sua for veiculada em algum estabelecimento público ou privado, como academias, boates, bares, lojas comerciais, festas juninas, Carnaval, Réveillon, emissoras de rádio e televisão, salas de cinema e serviços digitais.
Falta de informação e burocracia
Contudo, nem todos os músicos da cena brasileira conhecem o Ecad, ou estão inseridos em uma das associações que integram o órgão. Nesse caso, os artistas não conseguem usufruir dos benefícios propostos pela cobertura e fiscalização sistemática propostas pelo serviço.
“O Ecad fiscaliza quem usa a obra intelectual alheia de produção autoral e faz esta utilização de maneira pública, como em shows, eventos, rádios, e etc. Contudo, se um músico não é filiado às associações integradoras do Ecad, não terá valores arrecadados por ele, visto que esse não terá como fiscalizar esse artista”, diz André Cabral, advogado e professor de Direito Empresarial e Civil pela UFPB.
Cabral é responsável por atuar na defesa de alguns casos famosos de autoria de músicas, como o da música “Ai Se Eu Te Pego”, conhecida pela interpretação do cantor sertanejo Michel Teló. A música, que foi sucesso mundial, teve sua arrecadação bloqueada devido a um processo movido por três estudantes paraibanas que alegaram coautoria.
Em uma situação assim, justifica-se a importância de proteger uma obra intelectual, assegurá-la com benefícios morais e patrimoniais concedidos pelo direito autoral. Desse modo, é imprescindível que os músicos registrem suas obras na Biblioteca Nacional ou em qualquer outro meio idôneo (cartórios públicos ou certificadoras digitais) para ter seus direitos garantidos por lei.
“O grande problema que os autores enfrentam começa na própria documentação de sua autoria. O registro no Brasil não é constitutivo do direito, então muitas pessoas são autores de obras intelectuais e não as registram. Desse modo, posteriormente, alguém pode utilizar essas obras de forma indevida e não autorizada, tornando complicada a comprovação de sua autoria”, explica André Cabral.
Além da falta de informação, a burocracia em torno dos processos de assegurar obras intelectuais por meio do direito autoral se torna um empecilho que muitos músicos evitam, como comenta Pedro Victor Cruz, vocalista, guitarrista e compositor da banda recifense Enleio.
Além da falta de informação, a burocracia em torno dos processos de assegurar obras intelectuais por meio do direito autoral se torna um empecilho que muitos músicos evitam.
“Sabe-se que existem órgãos, porque um músico fala para o outro, mas não existe divulgação, ou algo que chame a atenção dos artistas para registrar seu trabalho. Em alguns, o artista tem que chegar com uma cópia da partitura da música assinada por ele em cada página, cópia da letra, documentação em dia e ainda pagar uma taxa de R$ 15 a R$ 30. Parece bobo, mas para quem não tem essas informações, fica complicado. Inclusive, muitos compositores não sabem transcrever a letra para uma partitura, o que dificulta ainda mais”.
Pedro Victor ainda ressalta que no meio musical o registro das músicas não é algo que preocupe muito os autores, tendo em vista que alguns produtores afirmam que o material sendo publicado no YouTube ou no SoundCloud – plataformas digitais de veiculação de música e vídeo – seria o suficiente para provar a autoria caso os direitos fossem lesados.
Má distribuição dos direitos autorais
Além dos problemas já citados, os músicos, principalmente os regionais, também são acometidos por outro problema: o conjuntural. Os artistas locais não se apresentam com tanta frequência quanto aqueles que estão no mainstream, e isso tem suas consequências.
Ester Rolim, produtora do cantor, compositor e instrumentista paraibano Escurinho, ressalta que faltam oportunidades para os músicos regionais que, por não tocar periodicamente em rádios, TVs e eventos, não conseguem sobreviver integralmente de direitos autorais.
“A associação arrecadadora responsável pelo trabalho de Escurinho, a ABRAMUS – uma das sete que compõem a Ecad -, trabalha de forma eficiente, mas as músicas não tocam nas rádios, então se não toca não tem como receber”, comenta Ester Rolim. “Vale ressaltar que algumas rádios, principalmente as públicas, não pagam direitos autorais. Ou seja, ela pode reproduzir as músicas de alguém o dia inteiro que o artista não receberá os direitos autorais por isso”.
Há, ainda, um outro entrave para que músicos regionais consigam usufruir da quantia concedida pelos direitos autorais de suas obras. São as declarações de isenção de arrecadação, que alguns contratantes impõem para as atrações musicais convidadas.
“Nem todos os contratantes informam ao Ecad para que seja feito o recolhimento do autor, assim como é normal que eles peçam uma declaração de isenção para que o artista libere o repertório da arrecadação. Sendo assim um empecilho para o artista local, que dificilmente deixará de fazer um show porque não terá seus direitos autorais arrecadados”, ressalta Ester.
O advogado André Cabral enxerga que o Ecad precisa mudar sua política para contornar esses problemas, de modo que o serviço seja mais democrático com os artistas que integrem as associações que compõem o órgão. “O Ecad precisa ser aperfeiçoado. Uma campanha intensa vem sendo levantada pelos artistas para que tornem os critérios do órgão mais democráticos, tendo em vista que, na prática, uns recebem bem mais do que os outros. Como aqueles que estão na grande mídia, em contrapartida de alguns, principalmente artistas regionais, que recebem muito pouco”.
Cabral ainda comenta que o órgão utiliza parte dos direitos dos autores para sustentar uma rede extensa de atravessadores usadas pelo Ecad, que, segundo ele, não deveria ser uma preocupação. Já Ester Rolim pensa que as mudanças também precisam ser feitas na conjuntura em que estamos inseridos, que abrange o trabalho do músico regional e sua divulgação.
“Precisamos de políticas públicas que deem mais oportunidades para os músicos, seja para aqueles que estão começando ou os que já têm muitos anos de carreira, mas que não conseguem chegar na grande mídia. É preciso que os músicos regionais que, mesmos conhecidos em suas cidades, ultrapassem esse âmbito, de modo que os mais diversos ritmos musicais regionais tramitem pelo nosso país, um país de muitas culturas”.
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