Em outubro do ano passado, milhares de pessoas se solidarizaram com a triste notícia de que um dos maiores nomes atuais do soul, Charles Bradley, havia sido diagnosticado com um câncer de estômago. Em 2016, a carreira autoral do artista de 68 anos completava apenas 14 primaveras desde o lançamento do seu primeiro single (“Take It As It Come”), e 5 a partir do primeiro álbum gravado em estúdio (No Time For Dreaming). Uma história muito semelhante de trajetória de vida e carreira artística tardia aconteceu aqui no Brasil: Cartola gravou o primeiro de seus quatro discos da carreira aos 66 anos de idade.
A notícia sobre o câncer de Bradley impactou toda a comunidade musical internacional, afinal, o cantor havia “acabado” de ser descoberto pelo mercado e pelo público, com as bênçãos de Sharon Jones e da Daptone Records, gravadora do Brooklyn que abraçou Charles Bradley antes mesmo de ele ter uma música própria composta. Ele foi afastado dos palcos por tempo indeterminado para atravessar um intenso tratamento contra a doença.
Mas nesta semana, através de suas redes oficiais, Charles Bradley divulgou com alegria a sua melhor novidade do ano: o tratamento fora finalizado com sucesso e os médicos o liberaram para voltar aos palcos ainda em 2017. Em declaração, o músico afirmou:
‘Eu estou tão grato pelos meus lindos fãs e me sinto tocado por todo o amor e suporte que eles me deram ao longo desse período de crise. Eles realmente me animaram e me fizeram continuar. Eu estou honrado e feliz de poder estar de volta e vou dar todo o meu amor a vocês.’
A segunda melhor informação é de que em setembro Bradley estará entre nós, brasileiros, ou ao menos entre o público do Rock in Rio. A organização do festival confirmou um show marcado para dia 16 de Setembro, na Cidade do Rock. Para quem não é adepto ao festival, resta torcer por apresentações paralelas. No Brasil, o músico já se apresentou na Virada Cultural de São Paulo em 2012, e no Sesc Pompéia, também na capital paulista, em 2015. Na época, os jornais resenhavam apresentações repletas de “soul, suor e lágrimas” e muita adesão do público ao espetáculo.
Performer de si mesmo
Na casa dos 70 anos de idade, Charles Bradley não teve e continua não tendo uma vida fácil, apesar do grande prestígio artístico merecidamente recebido nos últimos anos. Nascido na Flórida, ainda criança foi levado pela mãe ao Brooklyn, onde foi criado assistindo o seu maior ídolo, James Brown. Ver James Brown ao vivo de fato moldou o seu futuro. Após fases de extrema dificuldade e pobreza na infância, Bradley fugiu de casa na adolescência e passou a viver entre um vagão e outro de metrô de Nova York, onde se envolveu com drogas e, mais tarde, trocou-as por um programa social de estímulo vocacional a jovens pobres. E veja, a vida tem dessas. Foi trabalhando como cozinheiro através desse programa social que alguém o disse: “você se parece com James Brown”.
Superando (ou tentando superar) a timidez e o medo, com a comparação ao ídolo na mente, Charles foi convidado a performar pela primeira vez em um clube local. No documentário Charles Bradley – Soul Of America, ele conta que nesse dia, pouco antes do show, alguém o deu um drink e o microfone. Ele questionou: quantas pessoas havia na plateia? Umas 20 ou 30, o disseram. Mas quando foi chamado ao palco, o público era bem maior que três dezenas de pessoas e Bradley congelou. Então, um cara chamado Muddy, que estava logo atrás de Bradley no palco, literalmente o deu um empurrão. “Eu dei meu coração, as pessoas amaram e eu nunca mais parei”, relata.
Em suas biografias, não fica claro por quanto tempo o cantor trabalhou como “Black Velvet”, seu codinome de sósia do mestre James Brown. Se a vida imita a arte, como dizem, a vida desse homem é cinema. Por um período ele interrompeu suas apresentações, pois seus parceiros de banda foram recrutados para a Guerra do Vietnã. Anos mais tarde e de volta aos palcos, fora finalmente descoberto pela Daptone Records, gravadora que lançou do primeiro single ao último álbum do cantor.
A Daptone foi responsável por transformá-lo de um performer de James Brown em um performer de si mesmo. Charles, hoje, conta com um trabalho autoral bastante profundo. Por ser analfabeto funcional, ele tem o suporte do músico de sua banda de apoio, Gabriel Roth, para compor. A bagagem de vida repercute e gera muito material para composições. Ainda no documentário Soul Of America, Roth afirma que Charles tem as mais loucas e improváveis histórias de vida. “Eu apenas sento com ele e o escuto contar essas histórias, fazemos música sobre isso”, conta.
O Céu é o Limite
Além da celebração de sua recuperação do câncer (e torcemos por uma recuperação definitiva) e do aguardado retorno às turnês, mais uma surpresa envolvendo Charles Bradley foi liberada essa semana. Jack Steadmen, líder da banda indie Bombay Bicycle Club, lançou um clipe inteiro em animação através do seu projeto solo, Mr. Jukes. A música, “Grant Green”, é cantada por Bradley. 100% groove.
Carregando em si zero estrelismos, tocando uma vida bastante humilde, cheia de cicatrizes e um tanto solitária, Bradley segue a escola de imensos nomes do soul e do R&B ao transformar o maior sofrimento na maior expressão artística possível. E como prega uma de suas letras, quando o mundo está queimando em chamas, não se pode simplesmente virar a cabeça.
Charles Bradley é um homem que ainda acredita no bem e acredita nas pessoas, apesar de todos os problemas que atravessou em quase sete décadas de vida. “Amo a todos e nunca fiz mal a ninguém”, afirma em prantos em uma das cenas do documentário. É um privilégio coexistir na mesma época de um artista tão verdadeiro e honesto com sua arte. Vida longa.