Sabemos que o trabalho do artista é essencialmente solitário. Assim, quando estamos reunidos para discutir questões que não estão ligadas à estética e sim à organização do nosso ofício, conseguimos detectar as nossas fragilidades. Na última semana, a FIMS – Feira Internacional da Música do Sul, construiu este espaço de reflexões. Artistas com carreira internacional lado a lado com artistas em início de carreira, reagindo à mesma provocação: afinal, para onde levar a sua música?
Muitas ideias levantadas na FIMS vão surgir nesta coluna. No entanto, minha colaboração de hoje é amplificar, ainda mais, uma das conversas mais interessantes do evento. Transcrevi, com autorização da produção, parte do bate-papo realizado no dia 23 de junho com o título “Dependente ou Independente – um panorama sobre os festivais no Brasil e na América Latina”. Boa leitura!
Bina Zanette (Mediação). “Há um assunto que às vezes não chega ao público: como funcionam os festivais. A ideia desta conversa é explicar, em números, a estrutura desses grandes eventos.”
REC-BEAT, por Gutie
“O Rec-Beat acontece no Recife, durante o Carnaval. São 4 dias, com aproximadamente 30 atrações. São bandas, DJs e espetáculos infantis. Recebemos um público de 80.000 pessoas durante o Festival e, se falarmos em custo, nossa principal dificuldade é fechar as contas. Temos o apoio da Fundação Cultural de Recife e um edital municipal, mas sempre existe uma incógnita. Com as empresas privadas, vamos fazendo acordos e compondo o orçamento final. Na distribuição, 60% a 65% são para as bandas através de cachê, hospedagem e transporte. A equipe técnica, mais uns 15%. Fora isso, é tudo para divulgação. Um orçamento muito apertado.
Começamos voltados para a cena local, ou seja, um festival para que o turista conhecesse um pouco da música pernambucana. Focamos na nova música de Recife, fomos ampliando para a nova música brasileira e, há mais de 10 anos, começamos a olhar para a América Latina. Entramos em sintonia: a nova música brasileira e a nova música latina. Isso fez do Rec-Beat uma plataforma de lançamentos.
Antecipamos muitos nomes que entraram no circuito nacional e somos totalmente independentes sobre esta questão da curadoria. Dependentes da questão financeira e independentes na forma criativa.”
Se Rasgum, por Marcelo Damaso
“A independência de relação curatorial, que foi já dita, é um serviço prestado. Nós precisamos dessas bandas que os festivais como Rec-Beat ou festivais gratuitos formam. Temos na programação essas apostas, os grandes shows e os shows de porte médio. Os grandes sustentam a bilheteria, porque nosso festival dependente 100% disso.
‘É interessante perceber a importância que o FIG tem para todos os festivais. É um evento de longa duração, com recursos públicos. Funciona como um modelo.’
As bandas também são generosas com a nossa produção. Temos essa parceria, porque Belém é longe. Elas precisam entender que o deslocamento é o nosso maior gasto. Veja, gastamos cerca de 50% com as atrações.
Entre ser dependente ou independente, costumo falar que estamos no meio do caminho. Não somos mais underground e nem queremos ser mainstream.”
Festival Internacional de Garanhuns, por André Brasileiro
“O FIG tem uma especificidade: é público. Realizado exclusivamente com recursos do Estado. Desde 1991, funcionamos como uma janela para novos artistas pernambucanos e artistas em intercâmbio. Nossa curadoria é feita através de edital desde 2010. Estou há cinco anos na coordenação e tive uma prerrogativa para trabalhar com 20% de artistas convidados e, no início, usei esse limite. Em 2018, são somente 5% dessa margem.
Temos uma comissão para analisar as propostas, composta pela sociedade civil, indicada através do Conselho de Cultura, e pessoas especializadas na artes, eleitas por edital público. Neste ano, ouvimos 800 trabalhos de música. Fazemos fichas individuais e, no final, temos um ranking de 20 a 40 projetos. A partir disso, montamos a programação. Das 250 atrações do festival, temos valorizado as novas cenas artísticas, incluindo novos palcos.
O orçamento do FIG é de R$ 8 milhões, pois é um evento de difícil operação. Garanhuns está a 230 km da capital e precisamos de muito transporte, van, caminhão e locação de toda a estrutura, vinda de Alagoas e Recife. Gastamos em torno de 50% com programação e 50% com estrutura e logística. O festival se tornou de interesse público, pois, no total de 10 dias, levamos 600 mil pessoas para as atrações. Vale lembrar que Garanhuns tem uma população de 450 mil habitantes.”
Ollin Kan (México), por José Luís
“É muito interessante estar neste contexto brasileiro. O Brasil é o país-irmão mais distante, embora, no anos 70 e 80, vivenciamos a grande cena brasileira no México. Foram grandes shows de artistas brasileiros, a maioria ainda no exílio e, na volta da democracia, isso foi suspenso. É importante esta reflexão.
Foi adotada uma política norte-americana e entrou, no Brasil e no México, a cena da música anglo-americana. O que tocava no mundo não chegava até nós. Foi uma invasão da música do Norte da Europa e América, imposta por um tratado econômico. O tratado de livre comércio com América do Norte redefiniu a relação que tínhamos com a América Latina. Nas artes, chegou Hollywood, o que fez desaparecer o cinema mexicano. E assim foi com teatro, cênicas e as artes visuais. Tudo se converteu para entrarmos no mundo moderno e, com a expectativa de sermos um país de primeiro mundo, nos separarmos do resto da América Latina.
Na construção do festival, partimos desta realidade de vazio. Por isso, nos fortalecemos com os movimentos de culturas de resistências. Resistências a quê? A desaparecer. Agimos, impulsionando o festival dentro da Cidade do México e hoje recebemos 1 milhão de pessoas. Abrimos os espaços públicos, praças, e fazemos até 20 espetáculos simultâneos. Há 15 anos, temos o cuidado de programar 50% de grupos do México e 50% de grupos do mundo. Nosso festival é internacionalista e se fortalece no âmbito criativo, nos movimentos de resistência pelo mundo.”