Nesses quase 30 anos de carreira, Mônica Salmaso já ouviu todos os tipos de elogios, porém, todos merecidos, já que é uma das melhores cantoras nacionais da atualidade. Culta e cuidadosa, Salmaso conhece a sua voz de forma extremamente técnica e sabe nos levar pelos caminhos mais distintos, por isso mesmo é que ao se ver a notícia de que seu novo disco se chama Caipira, já é de se esperar que este seja o universo caipira de Mônica e de mais ninguém.
Construído de forma bastante detalhada, com toda a pesquisa usual da intérprete, Caipira surgiu como ideia ainda no show “Casa de Caboclo”, no início dos anos 2000, ao lado do violeiro Paulo Freire. Nesse encontro com a pesquisa de Freire é que se formou esse universo caipira da cantora, que esperou mais de dez anos para nascer.
Trazendo modas clássicas de viola, Caipira também apresenta releituras de compositores como Cartola e Roque Ferreira, geralmente associados ao universo urbano. Dentro do repertório, aparece, por exemplo, “Água da Minha Sede” (Dudu Nobre/Roque Ferreira), um samba que já foi gravado por Zeca Pagodinho e por Roberta Sá, mas que na versão de Mônica ganha as cordas da viola caipira e a sonoridade brejeira das flautas.
Também curioso no repertório é a escolha de “Bom dia”, composição de Gilberto Gil e Nana Caymmi (única faixa composta pela cantora), uma canção que quase mira o idílico, ao versar sobre uma amanhecer, em que a voz, apaixonada, diz para o outro acordar, falando da beleza do sol que raiou, mas que é quebrada pelo som da usina que já tocou, trazendo a faixa para um cenário bastante urbano, mercantilizado, em que “o dia te exige / o suor e braço / pra usina, do dono / do teu cansaço”.
O disco de Salmaso canta um Brasil que praticamente não existe mais, que se perde aos poucos.
Fica bem claro que o caipira de Mônica Salmaso vai bem além do conceito clássico do gênero musical, mas contempla-se como um estado de espírito, uma forma de olhar a vida e o Brasil, de forma delicada e sincera, algo ressaltado pelo cuidado dos arranjos, que algumas vezes aparece encorpado, mas muitas vezes surge mínimo, como se estivéssemos sentados numa varanda, viola & voz, a ouvir Mônica cantar.
“Leilão”, faixa de Hekel Tavares e Joracy Camargo, composta em 1933, é um desses casos que traz apenas a voz de Salmaso e a viola de Neymar Dias, e nada mais precisa. Faixa que conta a dolorosa separação de um casal de escravos, quando da venda da esposa para outro dono, é talvez o momento mais delicado e belo de Caipira, canção de apertar o peito e fazer chorar.
Dentro do repertório, ainda destacam-se “Minha vida”, de Carreirinho e Vieira, “Baile Perfumado”, de Roque Ferreira, e a faixa título, de Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro. Além disso, vale ouvir com cuidadosa atenção o encontro de Salmaso com o mestre Rolando Boldrin, em “Saracura três potes”, faixa de Cândido Canela e Téo Azevedo, que havia sido gravada na década de 1980 por Tonico & Tinoco.
“Caipira” tem ar quase de pesquisa histórica, de uma artista que nos reapresenta um Brasil, naquele mesmo espírito à la Maria Bethânia, de cantar o Brasil mais brejeiro, dos rincões, aquele quase perdido. Em entrevista ao Correio Brasiliense, Mônica afirmou: “esse é meu disco caipira, com todo o respeito que eu tenho pelo Brasil mais profundo. Neste momento, é mais urgente do que nunca, respeitarmos o que somos e cuidarmos da gente”.
O disco de Salmaso canta um Brasil que praticamente não existe mais, que se perde aos poucos, o que ressalta mais uma vez que a artista parece viver em um espaço-tempo distinto do nosso, onde ela nos apresenta o passado em outros ritmos. No final das contas, surge mais um grande e atemporal trabalho de Mônica Salmaso, por isso ignore a capa bastante brega de Caipira e dê chance a esse belo disco.