Trocando em Miúdos: Novo disco dos australianos do Tame Impala mostra lado mais funk, R&B e pop de Kevin Parker – e dá-lhe psicodelismos e timbres vintage.
O vento soprava forte na boca do palco, fazendo o cabelo de Kevin Parker colar ao seu rosto. Era muito difícil vê-lo no Coachella e não lembrar do jovem David Gilmour na clássica apresentação do Pink Floyd para as ruínas de Pompéia. Essa foi a primeira vez que vi um show inteiro do Tame Impala e a impressão foi das melhores possíveis. O som da banda, resgatando psicodelismos de 50 anos atrás, lembrava, entre outras coisas, a era Syd Barrett do Floyd.
Mas eu estava bem ciente de que a banda não era apenas isso. Antes mesmo de lançarem o excelente Lonerism (2012), quando ainda divulgavam o primeiro álbum, Innerspeaker (2010), pelo mundo afora, fizeram uma sessão para uma rádio e tocaram um cover do Outkast e uma versão incrível de Stranger in Moscow, do Michael Jackson. Ficou claro que Parker e Cia. iam além do rock e sabiam impor a personalidade viajante do grupo até ao hip hop e ao R&B.
Currents, o novo disco dos australianos, é a consagração da personalidade do Tame Impala – e não importa qual é o estilo musical em que se arriscam. Pode ser a disco de “Let it Happen”, o pop gentil de “Yes, I’m Changing” e “Reality in Motion”, o funk de “The Less I Know The Better”, o R&B de “Love Paranoia” ou a sensualidade rítmica de “Cause I’m a Man”; a banda permeou tudo com psicodelia (principalmente na forma como utilizam teclados e sintetizadores), timbres vintage em todos os instrumentos e uma forte pegada retrô, emulando como todos esses estilos eram feitos nas décadas de 1970 e 1980. E para completar toda a experiência, só falta ouvir Currents em vinil, formato que vai ressaltar todas as suas qualidades e características retrôs.
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É verdade que o novo trabalho é menos roqueiro, mas não quer dizer que não seja tão bom quanto os discos anteriores. Solos, riffs e dedilhados de guitarra estavam muito presentes em Innerspeaker, mas diminuíram consideravelmente em Lonerism, o que mostrou um evidente amadurecimento musical do grupo. Souberam se manter na mesma trilha, deixando a sonoridade do disco mais aberta e muito menos dependente das guitarras com phase, reverb, eco e delay. Nessa toada, Kevin Parker soube abrir ainda mais o espectro sonoro em Currents, elegendo baixo e teclados/sintetizadores como os verdadeiros protagonistas do álbum. A guitarra está em terceiro plano, mais completando a harmonia do que criando as melodias que marcariam todo o álbum. Mas justiça seja feita: o riff introdutório de “Let it Happen” e a sensual sequência de notas no refrão de “Cause I’m a Man” já estão entre os sons mais reconhecíveis do trabalho.
“É verdade que o novo trabalho é menos roqueiro, mas não quer dizer que não seja tão bom quanto os discos anteriores.”
Embora Currents tenha sido gravado praticamente inteirinho apenas pelo vocalista, letrista e multi-instrumentista Kevin Parker em um estúdio em sua casa, o Tame Impala conta com mais dois integrantes oficiais, também multi-instrumentistas: Dominic Simper e Jay Watson. Ao vivo são um quinteto, completado pelo baixista Cam Avery e o baterista Julien Barbagallo. Os mais recentes shows do grupo ressaltam a experiência extra-sensorial. A banda toca praticamente no escuro, quase sem iluminação frontal, à sombra de um grande telão que passa o show inteirinho exibindo imagens surrealistas, coloridas, caleidoscópicas, psicotrópicas, chapadas mesmo, que ilustram a sonoridade viajante de suas harmonias e sintetizadores.
Há duas linhas mestras que norteiam o conceito por trás de Currents (embora não seja um álbum conceitual). A primeira é musical. Parker disse que não via o público da banda dançando e queria, dessa vez, que as pessoas tratassem o show como uma espécie de pista. Afinal, pop, disco, dance, R&B e funk são ritmos usados há anos para a dança, e o jeitinho retrô do grupo agrada ao público indie e hipster que vai aos shows e festivais em que o Tame Imapala toca. A segunda linha está nas letras de Parker, que falam sobre as mudanças que qualquer pessoa sofre ao longo da vida ou de um período, transformando-as em alguém que antes não imaginavam que pudessem ser. Daí temos desde a ebulição de sentir as coisas acontecendo ao nosso redor e dentro de nós – como diz “Let It Happen” – até a percepção de que não somos mais os mesmos, mas isso não nos transformou em gente melhor ou exatamente naquilo que queríamos (ou achamos que deveríamos) ser – ideia presente em “New Person, Same Old Mistakes”.
O rock psicodélico não morreu com Syd Barrett ou Jimi Hendrix. Já teve diversas promessas e continua a apresentar muitas bandas que, ou recorrem a esse elemento (como o My Morning Jacket), ou de fato fincaram dois pés no estilo (como o Radio Moscow e o MGMT). Agora Tame Impala transcende o rock e sopra sua nuvem de cogumelos a uma vasta gama de música pop. O que mais Kevin Parker vai aprontar?