Nem sempre os artistas conseguem captar a essência de sua época. Trata-se menos de estética, por exemplo, é mais de necessidade, de encaixe no que a sociedade a quem se presta cantar precisa. A Maglore parece ser o tipo de banda cuja sintonia com essas urgências contemporâneas está sempre a postos para agir.
Se Todas as Bandeiras abraçou seu tempo, V, o novo disco do grupo baiano, é o próprio tempo, reflexo, corpo, alma, vícios e virtudes de um Brasil pandêmico.
A nostalgia sempre foi ingrediente presente no trabalho do grupo, mas V é catapultado pela ausência do que nunca foi. Esse encontro de variadas inspirações, na qual os Beatles parecem ser sempre a bússola, resultam em um disco cujos arranjos e harmonias parecem estar nos dizendo, em uníssono, que precisamos nos reerguer do abismo em que fomos jogados enquanto sociedade.
A Maglore não parece ter a pretenção de oferecer as soluções, mas dá a nítida impressão que fazem um convite ao público para, juntos, com um rock que não se furta em ser pop quando necessário, nem a beber de fontes menos “roqueiras”, encontrarem saídas para um universo de mais beleza e animação.
Teago Oliveira, Felipe Dieder, Lelo Brandão e Lucas Gonçalves estão tão confortáveis em V, que não soa exagero cravar que o novo álbum é o melhor momento da Maglore. Se o registro será o melhor deles e dos melhores que lançamos em território nacional, só o distanciamento histórico permitirá analisar.
https://open.spotify.com/album/6bQw2aNY06eokyQwc2IaK4?si=1RwRaQ1GTxGtI-fhGgu9SQ
A banda não se desvia de uma busca constante pelo desafio, em sair de sua zona de conforto, ser experimental.
A banda não se desvia de uma busca constante pelo desafio, em sair de sua zona de conforto, ser experimental. O maior acerto é não se perder nessa trajetória, que é repleta de bastante ternura, inclusive. Todo o trabalho do quarteto foi construído em bases sólidas, sem obviedades, uma concatenação de valores que permanecem fiéis em V.
Acima das vicissitudes da carreira do grupo, das agruras de ser artista no Brasil e do enfrentamento à extinção do “fazer rock” na música contemporânea, a Maglore oferece ao público um convite à reflexão da maneira mais humilde possível, em uma perspectiva de quem entendeu certos fatos e gostaria que outras pessoas enxergassem o mesmo.
Como cantam em “A Vida É uma Aventura”, faixa que abre V, “inevitavelmente você vai sofrer de novo”. Essa crueza em aceitar as inclemências da vida não são pessimismo, mas o momento em que se entende que determinados aspectos não podem ser empecilhos em viver. Soa brega? Talvez, mas também escancara um dos aspectos mais cômicos da existência: a vida é uma breguice sem tamanho.
E nesse redevor, quem não está em busca de seus amores de verão? Essa imunização ao desalento é a vibe que vai entremeando as canções, abrindo campo sobre a escuridão temerosa para a qual nos arrastamos e fomos arrastados.
Não se vende solução, como Teago declama em “Espírito Selvagem”, entende-se a urgência de se comprometer com a presença, tal qual “Talvez” no mostra, e levam o ouvinte em batidas que proclamam que determinados sujeitos não tem mais espaço com seus vícios em destruição (“Eles”).
Por não haver “mais nada a se perder” (“Outra Vez”), por sabermos que há “muitas feridas […] pra se curar” (“Transnacional”), afirmaria que o disco é uma singela contribuição ao combate contra essa “banalidade do mal” que se instalou nas rachaduras do que somos enquanto seres humanos, num contexto muito mais amplo do que ser brasileiro.
Exagero? Prefiro pensar que não há espaço à mediocridade do não pensar nestas canções, e contribuo com minha dose de breguice necessária nestes tempos tão bicudos.
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