Enquanto você lê este texto, o sol lá fora vem tímido, aquecendo uma primavera tão tímida quanto ele. Nas rádios, artistas são tocados e o público canta juntamente com a canção. Apesar de uma cena mais rara nos dias de hoje, ela ainda existe. Existem alguns artistas, para além dos gêneros mais representativos da cultura de massa, que resguardam essa vivacidade radiofônica. No Brasil de hoje, provavelmente a maior representante seja Marcela Vale, popularmente conhecida como Mahmundi.
Mas tão difícil quanto esta penetração em diferentes camadas da população, pouquíssimo eclética quando o assunto é música, é também ser sucesso de crítica. Pois foi justamente isto que Marcela obteve: respeito e admiração de público e crítica. E ainda que os resultados tenham chegado tão rápido, a cantora sempre acreditou que era possível. “Sempre acreditei muito em mim, no trabalho que iria fazer. Sempre achei que música era o melhor que eu poderia fazer”, afirma a cantora em entrevista exclusiva para A Escotilha, dias antes de sua participação no Secret Festival.
Residindo em São Paulo desde o primeiro semestre deste ano, Marcela procura colocar o que viveu até agora em perspectiva, feliz pelo já alcançado, mas ciente de que ainda falta muita estrada. “Fácil nunca é. Não é fácil largar o emprego, comunicar família e amigos que você decidiu viver de música”, comenta. “O que me dá alegria é a sensação de que um passo está cumprido”.
Para ela, que começou na música aos nove anos, e depois trabalhou sete anos como técnica de som no Circo Voador, a palavra que talvez melhor defina este momento seja felicidade. “Eu fico muito feliz. É um trabalho que começou completamente autoral, em casa, com uma placa [de som] que dava defeito, programas craqueados. A probabilidade de dar pau era gigante, mas eu consegui fazer o melhor que eu podia”.
O espaço e o reconhecimento conquistados por Mahmundi e seu sensual e radiofônico disco homônimo são muito representativos para uma indústria que ainda é lugar inóspito às mulheres. “É muito difícil. Eu senti na pele todas essas coisas. Ser nova, ser mulher e, obviamente, de ser negra eu passo isso em todos os lugares. Eu acabei deixando isso de lado para não sofrer. Mas é uma coisa pessoal”. E como enfrentou essa situação? “Resisti a tudo isso com a força dos amigos, dos fãs que acreditam”.

‘É uma sensação de alívio, porque parece que você tem que ficar provando para as pessoas que você tem razão, quando na verdade era para ser tão fácil’.
Mahmundi certamente constará entre listas de melhores discos do ano, um reconhecimento merecido a um álbum que transpira charme, sensualidade, criatividade e beleza. “É uma sensação de alívio, porque parece que você tem que ficar provando para as pessoas que você tem razão, quando na verdade era para ser tão fácil”, afirma a cantora. “É uma batalha diária. Tem muitas meninas que aparecem no meu e-mail pedindo para eu não desistir, muitas jovens que compraram guitarras parceladas, muitas mulheres que falaram que terminaram o namoro porque o cara as diminuía dizendo que não deviam produzir. Documentos reais de gente que vive isso no dia a dia”. Para sorte do público, Marcela não desiste. “Eu fico muito feliz de sobreviver a isso com elegância”.
MUDANÇA PARA SÃO PAULO
“São Paulo me fez muito bem. O Rio de Janeiro me hipnotiza, é o eixo das minhas canções, das minhas construções. Mas São Paulo me deu foco, é uma beleza surpreendente”. Nascida e criada no subúrbio do Rio de Janeiro, Mahmundi vive há alguns meses na selva de pedra paulistana, e é assim que fala sobre sua mudança e o reflexo dela em sua carreira.
“Essa efervescência da cidade me faz muito bem, sentir-me jovem, parte de uma cidade que tem muito grafite; tem muita violência como todas as outras, mas que tem as riquezas, a lealdade de ser uma metrópole como São Paulo é. Eu não tava preparada, mas mergulhei. Em janeiro eu disse ‘eu vou’, e estou muito feliz de estar aqui. Já falo até em gíria”.
AS INFLUÊNCIAS
Uma rápida procurada no Google e você encontrará inúmeros textos em blogs e sites especializados em música comparando a sonoridade e os timbres de Marcela com outra cantora gigante, especialmente nos anos 80. A comparação com Marina Lima, nas palavras da própria Mahmundi, é digno de muito orgulho.
“Eu acho que quando as pessoas falam de Marina Lima eu quero acreditar que elas estejam falando dela ter sido a maior artista da época dela. Uma mulher incrível, que trouxe uma inovação para o som. Eu acho que é isso. Ser comparada com ela é uma coisa muito foda, por tudo que ela foi e está aí documentado”, conta.
Mas as influências de Mahmundi não param por aí. Keane, Feist e Jon Brion, este último um grande músico e produtor que já trabalhou com Kanye West e Fiona Apple, também estão refletidas no trabalho da cantora. “Keane, Feist, Jon Brion, Chilly Gonzales e Jamie Lidell foram pessoas que me desenvolveram muito a parte musical. Esses caras me deram essa postura de tocar bateria, tocar guitarra e tudo mais; e o Brasil me ajudou de outra forma, na composição, na melodia, na canção. Foi uma ótima parceria, inclusive”, finalizou.

CINCO PERGUNTAS PARA MAHMUNDI
A Escotilha: Como outras artes te influenciaram? Literatura, teatro, cinema… O quanto você se sente impactada pela cultura e de que forma você canaliza isto no seu processo criativo?
A Escotilha: Em entrevista ao HuffPost Brasil, você disse não levantar bandeiras, porque por si só você já é uma bandeira. Você se sente cobrada enquanto pessoa pública em ter um posicionamento, em emitir opiniões, seja sobre o cenário político, sobre políticas públicas, sobre minorias de poder?
A Escotilha: O que te dá medo e o que te encanta?
A Escotilha: Para você, o que é a liberdade? Você se sente livre?
A Escotilha: O que é fazer música ao sul do mundo? De que maneira você acredita que a música da Mahmundi se encaixa e dialoga com o que é feito no restante do mundo?