Dois músicos vão chegando de mansinho na Rua da Constituição, Rio de Janeiro. Usando um abadá do líder soviético Stálin e bermuda preta, MFKIM parece ter uma missão na mente. Mas ele não está sozinho. Igor “Baia” Tavares, em trajes de estilo diametralmente opostos ao de seu companheiro (camiseta e calça jeans, em perfil mais sóbrio), empunha seu baixo azul headless. Aquele canto da Cidade Maravilhosa, próximo ao Escritório Transfusão, está prestes a explodir em caos proporcionado pela Partido da Classe Perigosa, só talvez não saiba disso.
Segundo a cosmogonia grega, o caos seria o primeiro deus primordial a surgir. A origem de seu nome estaria no grego kháos, algo semelhante a abismo ou vazio. Seria, assim, a mais antiga forma de consciência divina, e a condição essencial para a origem de tudo. Fernanda Abreu e Fausto Fawcett eternizaram há mais de 30 anos a ideia de um Rio de Janeiro quente, essencialmente o “purgatório da beleza e do caos”, mas coube ao trio do PCP (do qual também faz parte Eduardo “Crime” Barros) traduzir, de maneira energética e inovadora, a atual diversidade cultural da capital fluminense, laboratório de um Brasil em eterno caos – condição essencial para a origem de tudo de mais perverso, socialmente falando.
O Partido da Classe Perigosa, ou Partidinho, como é carinhosamente chamado, mescla gêneros musicais que, em leitura, soam díspares, mas se fundem em uma simbiose bastante lógica. Amalgamando hardcore, música eletrônica, funk carioca e punk, MFKIM, Baia e Crime fazem música proletarizada, como se jogassem Sleaford Mods, o Manifesto Comunista e todo o caldo de cultura carioca em um liquidificador. “A identidade sonora do Partidinho nasceu da necessidade de se fazer um som dançante, pesado e que representasse a vida da classe trabalhadora no contexto do capitalismo tardio sem a necessidade de estar em um estúdio com todos os integrantes presentes”, contam os músicos, em entrevista exclusiva à Escotilha.
Todo o caos e urgência não são em vão, desmistificando qualquer ideia de caricatura do projeto. “A gente meio que tenta fazer o que a canção ‘pede’ dentro das nossas limitações como músicos e produtores”, explicam. Composições como “(sem querer mas) playboy também morre” e “Baile do Branco Rico” escorrem um humor ácido, que no contexto de Práxis, álbum da banda lançado no início deste ano, tem zero pretensão de soar engraçado. “O sarcasmo e a chacota são formas de lidar com a realidade surreal a qual estamos submetidos. A gente compõe as letras e usa ritmos que possam passar uma mensagem, mas entendemos que o humor ácido e a sátira historicamente sensibilizam o ouvinte de alguma maneira”, afirmam.
Não faltam referências no disco, do clássico seriado japonês Kamen Rider ao filósofo e líder indígena Ailton Krenak. Uma escolha natural do processo de composição do trio, como contaram em nossa entrevista. “Muitas vezes, estamos compondo e surge algum comentário com alguma referência de algo que tem influência na nossa vida, e aquilo entra na música porque fica difícil dissociar”. São essas escolhas que determinam a cara de suas gravações e o perfil do grupo, justamente por serem hábeis em desmantelar discursos dominantes sobre meritocracia, empreendedorismo e progresso.
As letras da PCP dialogam com o colapso social e político, denunciam a violência de classe, a repressão estatal e a precarização do trabalho, ao mesmo tempo em que sugerem (através do título do álbum) a necessidade de ação e transformação, em vez de apenas contemplação teórica. “Práxis é um reflexo da vida de trabalhadores em meio à opressão do sistema. Antes de sermos músicos na banda, somos trabalhadores tentando sobreviver, pagar as contas e sustentar nossas famílias”, explicam os artistas.

Pensar no retorno financeiro vindo de faixas que atacam a alienação religiosa (“Apocalipse segundo E. Macedo”), a cultura da hiperconectividade (“10trap”) e a uberização e meritocracia (“Teoria do Crime”), enquanto base considerável da sociedade a quem essas críticas se destinam parecem distantes, não entra no radar do grupo. “Nós temos a noção de que muita gente não quer ouvir música desse tipo, e tudo bem”, apontam os músicos. “Não fazemos esse tipo de som pensando que isso vai nos sustentar. Isso faz parte da lógica da mercadoria e esse tipo de ilusão neoliberal meio que cria um monte de fantasmas na cabeça de quem faz arte”, sentenciam.
Amalgamando hardcore, música eletrônica, funk carioca e punk, MFKIM, Baia e Crime fazem música proletarizada, como se jogassem Sleaford Mods, o Manifesto Comunista e todo o caldo de cultura carioca em um liquidificador.
Celebrando um ano de banda, o trio lançou o EP Devorador, que definiram como “glossário e notas de rodapé” de Práxis. No registro, apresentam uma versão alternativa de “Devorador” (uma espécie de faixa oculta de Práxis), uma mix alternativa de “(sem querer mas) playboy também morre”, um remix da banda Fuck Youth, além de “Montagem da mais valia”, que já era tocada em apresentações. “Musicalmente, estamos indo em uma direção mais experimental e psicodélica. (…) Em termos de letras futuras, a intenção é convocar o público trabalhador a direcionar seu ódio para o lugar correto: ao modo de produção capitalista”, finalizam os integrantes do Partidinho.
Abaixo você pode conferir a íntegra da entrevista com os músicos da Partido da Classe Operária.
Escotilha » O Partido da Classe Perigosa soa como uma colisão de hardcore, funk carioca e eletrônica, tudo em um liquidificador de caos e urgência. Como essa identidade sonora nasceu?
PCP » A identidade sonora do Partidinho nasceu da necessidade de se fazer um som dançante, pesado e que representasse a vida da classe trabalhadora no contexto do capitalismo tardio sem a necessidade de estar em um estúdio com todos os integrantes presentes. Entendemos que a música eletrônica pode ser um veículo poderoso para essa mensagem, o hardcore é historicamente um estilo musical antissistêmico e o funk é um dos principais ritmos que compõem a trilha sonora da vida do trabalhador brasileiro contemporâneo. Por isso, a importância de incorporar essas influências (entre outras) ao nosso som. Então é basicamente estrutura eletrônica, postura hardcore e papo reto aliado ao pancadão.
O nome da banda carrega um peso político óbvio. Quem, para vocês, compõe essa “classe perigosa” hoje?
Todo trabalhador é a Classe Perigosa. Tenta juntar 100 trabalhadores organizados em frente a qualquer instituição cobrando direitos e IMEDIATAMENTE o Estado (sequestrado pela burguesia) vai acionar as forças de segurança pra “controlar a situação”. O trabalhador organizado é uma ameaça à hegemonia estabelecida pelas classes dominantes no modo de produção capitalista. Por isso, todos somos a Classe Perigosa.
Práxis soa como uma resposta à precarização do trabalho, à violência urbana e à alienação digital. Foi pensado como um manifesto ou a urgência veio primeiro e a política depois?
Práxis é um reflexo da vida de trabalhadores em meio à opressão do sistema. Antes de sermos músicos na banda, somos trabalhadores tentando sobreviver, pagar as contas e sustentar nossas famílias. As canções são compostas e produzidas nos nossos horários de folga e a inspiração é o contexto que estamos submetidos. Não somos uma banda que pode se dar ao luxo de parar, compor e produzir um álbum. Tudo é feito nas frestas que a gente abre em meio ao caos que é a vida de um trabalhador nesse sistema. As canções naturalmente refletem isso. Uma vez perguntaram após um show a inspiração pra nosso som e a resposta é válida até hoje: a inspiração vem de ser chamado durante a folga pra fazer um curso de 12 horas no trabalho sem receber hora extra.
Há um humor ácido em muitas faixas — “Baile do Branco Rico”, por exemplo, poderia ser tocada em um evento corporativo sem que os presentes percebessem a ironia? Esse sarcasmo é uma ferramenta consciente para vocês?
Existe um senso de humor sem tentar soar engraçadinho. O sarcasmo e a chacota são formas de lidar com a realidade surreal a qual estamos submetidos. A gente compõe as letras e usa ritmos que possam passar uma mensagem, mas entendemos que o humor ácido e a sátira historicamente sensibilizam o ouvinte de alguma maneira. A letra de “Baile”, por exemplo, foi composta usando diversos termos corporativos e de consultoria de investimentos financeiros que pra nós soam ridículos, mas as pessoas usam corporativamente como se fossem robôs.

O álbum se constrói entre referências de Kamen Rider a Ailton Krenak. Como essas influências se encaixam no que vocês querem expressar?
É meio que natural no processo de composição misturar nossas referências pessoais no contexto das letras. Então, muitas vezes estamos compondo e surge algum comentário com alguma referência de algo que tem influência na nossa vida, e aquilo entra na música porque fica difícil dissociar. O começo de “10trap” tem um comentário antes da letra entrar que resume bem isso. A música começa e ela parece um tema de vilão de tokusatsu mesmo. Foi só um comentário que rolou na gravação, mas é tão natural e forte que acabou ficando na mix final da canção.
Vocês transitam entre gêneros com uma naturalidade rara. Até que ponto isso é proposital e até que ponto simplesmente acontece?
A gente meio que tenta fazer o que a canção “pede” dentro das nossas limitações como músicos e produtores. Então, se estamos falando sobre repressão policial, por exemplo, vamos ter que usar algum elemento musical agressivo, seja um beat com um ritmo rápido, uma distorção no baixo ou um grave mais pesado de funk. Em outro contexto, a gente tenta adaptar o ritmo e o estilo do instrumental à proposta da letra pra que faça sentido cantar usando aquele instrumental como base. Ajuda muito nesse sentido sermos pessoas com gostos musicais bem amplos e até, em certos momentos, contraditórios. Algo que passa por coisas como Ministry, Catra, Daft Punk, Merzbow, Depeche Mode, Luiz Carlos da Vila, Febem, Kamasi Washington, King Diamond, entre outras coisas.
Em Práxis, as bases eletrônicas são tão agressivas quanto as guitarras. O eletrônico tem um peso igual ao punk e ao hardcore na identidade da banda?
Sim. Um camarada nosso, o Gilber T do Disstantes e Seletores de Frequência sempre fala: “o grave é a nossa guitarra”. Dá pra fazer um som extremamente agressivo somente usando bases eletrônicas sem nenhuma guitarra. Então, no começo das produções, a gente sempre escuta bastante a base antes de colocar mais algum elemento distorcido, porque em muitos casos ela já é suficiente pra dar a agressividade que o som pede.
O Rio de Janeiro aparece nas letras de vocês como um espaço de tensão constante. A cidade molda o som da banda ou é a banda que procura moldar a cidade ao seu som?
O Rio de Janeiro (principalmente subúrbio e região metropolitana), assim como toda grande metrópole na periferia do capitalismo, corrói o trabalhador até quase um ponto de insanidade. Você ficar 2 horas pra chegar no trabalho e 2 horas pra voltar pra casa em uma condução lotada, cara e perigosa, trabalhar em uma escala com 1 ou, às vezes, nenhum dia de folga e receber um salário de miséria que mal dá pra pagar o custo de vida desse lugar, desumaniza as pessoas. O som da banda é forjado nessa realidade maldita que é tentar sobreviver em um lugar que estimula a competição entre os nossos ao máximo e a qualquer momento pode te matar.
Onde vocês se encaixam na cena musical carioca? Existe uma cena que abrace esse tipo de som ou vocês estão desbravando um território ainda inexplorado?
Quando começamos a fazer esse tipo de som, muitos produtores de eventos diziam que a gente era eletrônico demais pra eventos de rock e barulhentos demais pra eventos de música eletrônica. Então, naturalmente fomos procurando e conhecendo camaradas com propostas parecidas pela necessidade de fazer os shows. Dessa forma nasceu o movimento Cariocaos, que é composto atualmente pelas bandas 808 Punks, Disstantes, Miçanga! e Prefeitura do Rio. Esses artistas todos fazem som eletrônico com uma pegada independente e mais agressiva. Não sabemos dizer se os artistas do Cariocaos foram pioneiros nesse tipo de proposta musical (o camarada Miçanga!, por exemplo, já estava fazendo esse tipo de som há anos), mas quando começamos só conhecíamos essas pessoas e a galera do Crizin da ZO fazendo coisa eletrônica mais agressiva desse tipo.
Muitos artistas independentes enfrentam dificuldades para se sustentar com música no Brasil. Para vocês, há um futuro possível em que o Partido da Classe Perigosa possa viver de arte sem abrir concessões?
Não fazemos esse tipo de som pensando que isso vai nos sustentar. Isso faz parte da lógica da mercadoria, e esse tipo de ilusão neoliberal meio que cria um monte de fantasmas na cabeça de quem faz arte. Se acontecer (o que a gente acha muito difícil tendo em vista o conteúdo das canções), beleza, mas isso não é uma meta ou uma questão relevante nessa banda. Essa consciência nos permite encarar o processo criativo sem levar em consideração o gosto alheio, tendências de mercado ou o que se espera do nosso som. Nosso foco então é 100% nos elementos que a música que estamos produzindo no momento precisa.
A sensação de Práxis é de um álbum feito para ser ouvido alto, de preferência em um ambiente onde o público possa gritar junto. Como tem sido a recepção dos shows?
Quando as pessoas entendem e se identificam com a proposta, a reação geralmente é muito positiva. Nós temos noção de que muita gente não quer ouvir música desse tipo, e tudo bem. E a gente tem noção de que a ideologia dominante em uma determinada época é a ideologia da classe dominante daquela época. Então, se o nosso som ou as letras agradam só um público mais restrito, quer dizer que o que estamos fazendo está em oposição ao que é culturalmente hegemônico. E isso já é o suficiente.
Se Práxis é a denúncia, o que vem depois? Alguma ideia de como a música de vocês pode evoluir?
Musicalmente, estamos indo em uma direção mais experimental e psicodélica. O single que lançamos com o Jefferson Plácido é uma amostra do que a gente vai tentar incorporar ao som daqui pra frente. Em termos de letras futuras, a intenção é convocar o público trabalhador a direcionar seu ódio para o lugar correto: ao modo de produção capitalista. Ao invés de ficar brigando pelo topo, a gente tem que destruir o topo e criar espaços coletivos livres da lógica da competição em que todos possam ter dignidade de viver, criar e produzir.
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