Em tempos difíceis, como os atuais, achar um pouco de poesia no dia a dia talvez seja uma forma de, ao menos, encontrarmos inspiração para seguirmos em frente. É mais ou menos com essa premissa que chega ao público Precariado, novo álbum do músico Wado, o décimo da carreira do artista e o primeiro exclusivamente de inéditas em dez anos. Um disco poético e também político.
Wado foi buscar inspiração para batizar o novo registro em Noam Chomsky. No entendimento do pensador norte-americano, “precariado”, termo formado pela combinação de “precário” e “proletariado”, diz respeito àquilo que é produzido no terceiro mundo, por mão de obra barata, para consumo de países desenvolvidos. No Precariado de Wado, esse conceito se constrói de uma maneira mais sutil, como um pano de fundo que se entrelaça a outros temas.
“Precariado está no disco como está o desemprego em nossas vidas: entre um trabalho e outro, tentamos não olhar para ele no olho, é uma sombra, um assunto, mas continuamos seguindo adiante e tentando ter bom humor para a gente não enlouquecer e para que possamos enganar os outros que estamos bem e manter o contrato social que é: trabalha para pagar tua continha. Ele encara esses problemas graves levemente, se agarrando nas delícias diárias para remarmos forte nesta maré esquisita”, explicou o músico em entrevista exclusiva.
O disco é composto por onze faixas, quase todas feitas em parceria com amigos compositores (com exceção de “Onda Permanente”, composta apenas por Wado). Também é recheado de participações, entre elas de nomes da nova geração da música nacional independente, como Tuyo, Baleia e Figueroas. É, ao final, um disco sobre relações, e talvez brote daí um pouco do otimismo que o cantor busca trazer nas composições, muitas delas versando sobre amor e relacionamentos, um tema que não é o preferido do artista, mas que chega com força em Precariado.
Neste trabalho, Wado segue fiel a uma característica que acompanha sua carreira de quase duas décadas, que é a de transitar sem amarras por diferentes gêneros. Se no disco anterior, Ivete, lançado em 2016, o músico buscou referências no axé music, em Precariado salta aos ouvidos o samba, que já foi bastante forte em trabalhos anteriores, como Samba 808, de 2011. Porém, ele não para por aí. O disco é temperado também pelo eletrônico, pelo pop e pela música experimental, criando um diálogo bastante rico entre a tradição da música popular brasileira e aquilo que vem sendo produzido no agora.
Não se trata de uma reflexão política escancarada, mas de um trabalho que se constrói a partir de elementos que, às vezes, são nosso refúgio em meio a um sistema turbulento
“Acho que esse disco é um disco de samba feito pelo Haim, The Weeknd ou pelo Pharrel, entende? A ‘Grama do Esgoto’ é Tom Zé com Cake, ‘Tudo salta’ é Luis Melodia com Tame Impala, ‘Força’ é samba rock com Daft Punk e assim por diante. Digo isso não que tenhamos chegado a esses cruzamentos, porque seria uma arrogância. É mais como os bichinhos híbridos da capa do disco: umas lindas esquisitices”, conta Wado, que também foi responsável pela produção do álbum.
Precariado é um disco que trabalha com a sutileza, tanto pelo tema que traz de fundo quanto pela sonoridade que o preenche. Não se trata de uma reflexão política escancarada, mas de um trabalho que se constrói a partir de elementos que, às vezes, são nosso refúgio em meio a um sistema turbulento. A ideia, nos parece, é justamente não ser explícito sobre o tema, mas deixar esse espaço para que cada um o preencha com suas próprias reflexões. “As coisas já estão todas ditas, as pessoas agora escolhem como conversar com ele”, falou o músico. É hora de aproveitar que o disco já saiu e dar uma chance para essa conversa.
Confira a íntegra da entrevista com Wado
Escotilha » ‘Precariado’ é o seu primeiro álbum exclusivamente de inéditas em dez anos. Em que momento e de que forma essas canções foram nascendo?
Wado » Essas canções, quase que em sua totalidade (exceto “Onda Permanente”, que fiz sozinho) são canções compostas com amigos compositores, então foi quase um susto perceber que eu tinha um disco e, ainda mais: um acaso, que em unidade ele tivesse coerência, fizesse sentido e fosse bom como as pessoas tem dito que é. É como cozinhar cantarolando, às vezes a comida pode ficar boa, às vezes o melhor do processo pode ser o assobio.
O disco traz no título um conceito de Noam Chomsky. De que forma o conceito de “precariado” é explorado no disco?
De maneira suave, isso se posta no disco suavemente assim como o samba. São muletas, mas muletas frágeis pois as canções são mais fortes e se postam como pilar do disco de fato, o “precariado” tá no disco como está o desemprego em nossas vidas: entre um trabalho e outro, tentamos não olhar pra ele no olho, é um sombra, um assunto, mas continuamos seguindo adiante e tentando ter bom humor pra gente não enlouquecer e para que possamos enganar os outros que estamos bem e manter o contrato social que é: trabalha pra pagar tua continha. Ele encara esses problemas graves levemente, se agarrando nas delícias diárias pra remarmos forte nesta maré esquisita.
O título faz referência a uma questão política, porém há muito sobre amor e relacionamento nas canções também. Para ti, há relação entre esses dois temas? Como é compor sobre esses temas?
Sou um cara refratário pra escrever sobre amor, evito mesmo, pra não revelar tudo, porque no fim o essencial é o sempre o amor né? Nesse disco, acabei falando muito disso, talvez estivesse tentando falar do amor dos amigos que me mostravam inícios de melodias, mas nunca é tão assim altruísta né, sempre vaza um pouco de nós mesmos. Se eu fosse tentar explicar como o amor é político, acho que podia ser assim: Você tem uma fruta, a casca é a politica, ela tá antes de tudo. Provando ou desaprovando a doçura da fruta, você terá de comer com o invólucro ou descascar ele. O amor está neste ambiente, por isso, às vezes, para descrevê-lo, o amor é político.
‘Precariado’ tem influências do samba, do pop, do eletrônico e do experimental. Como foi o processo de juntar todas as referências? Há artistas que serviram de referência para ti?
Há sim, acho que esse disco é um disco de samba feito pelo Haim, The Weeknd ou pelo Pharrel, entende? “A Grama do Esgoto” é Tom Zé com Cake, “Tudo salta” é Luis Melodia com Tame Impala, “Força” é samba rock com Daft Punk e assim por diante. Digo isso não que tenhamos chegado a esses cruzamentos, porque seria uma arrogância. É mais como os bichinhos híbridos da capa do disco: umas lindas esquisitices.
Atuas também como produtor do álbum. Como foi o processo de arranjo e de gravação? Quais músicos te acompanharam?
Em essência, os meninos que tocam comigo há 10 anos já: Rodrigo Peixe, Vitor Peixoto e Dinho Zampier, com o acréscimo do irmão do Vitor, o Igor Peixoto. Fico feliz e tenho orgulho da forma com que conseguimos nos reinventar e mudar nossa abordagem em arranjos pra cada disco, isso é difícil.
Sobre os processos: Fizemos uns quatro ou cinco ensaios das canções pra sairmos do zero, mas o disco não se revelou de cara como o anterior, Ivete. O que surgiu nestes ensaios foram apenas imagens nubladas, difusas do que o disco poderia ser, tivemos de enfiar os dedos fundo na terra pra buscar o barro do qual o disco seria feito, deu muito trabalho de estúdio, remoldamos muito as coisas no estúdio, descartamos muitas células, brincamos muito em cima dos mapas para que o acaso nos ajudasse em certos momentos. Foi fácil não.
O álbum conta com parcerias, inclusive com nomes da nova geração como Tuyo e Baleia. Como rolaram esses contatos?
Alguns já conhecia o som, alguns são amigos, foram convites verdadeiros no sentido de refletirem o que gostamos de ouvir em 2018 no Brasil. Tem muito mais coisa boa rolando, claro, mas estes são pontas de lança.
Outro detalhe interessante do novo disco é a arte, feita pelo artista Moisés Crivelaro. Poderia contar um pouco sobre esse trabalho?
O Moisés me desenhou antes de nos conhecermos, daí fui ver as coisas dele e fiquei maluco. Ele é artista com “A” maiúsculo, conceitua, tem um domínio de técnica incrível e isso não atrapalha ele, ter essa técnica não gera nele uma empáfia, pelo contrário, ele sabe o que é relevante, a técnica é só uma ferramenta pra se dizer. Nesse disco, pela capa maravilhosa, pela primeira vez considero a possibilidade de mandar prensar vinil, se eu tivesse muito dinheiro eu o faria, por causa de Dorgi Barros e Moisés que fizeram o encarte. Mas considerar a opção não é fazer né?
Já está com 17 anos de carreira, lançando seu décimo disco. Como tu situaria esse novo trabalho na tua trajetória? O que ele representa pra ti nesse momento?
É mais um disco, mais um filho no mundo. As coisas já estão todas ditas, as pessoas agora escolhem como conversar com ele.