Há um ano, perdíamos uma das grandes vozes (e alma) da música brasileira: Gal Costa, a baiana cujas interpretações carregadas de paixão transcendiam as nossas capacidades de escuta. Talvez sem saber, Gal deixou um legado de filhas e filhos entre intérpretes que beberam não apenas de suas canções, mas de seu jeito emotivo – ainda que esteticamente perfeito – de entoar o que chegava à sua bela voz aguda.
Uma de suas herdeiras, sem dúvida, é Filipe Catto, cantora magnética que surgiu no meio artístico no início dos anos 2000, onde tem ocupado um lugar especial com seu timbre raro de contratenor. Em 2023, Filipe traz ao mundo o tocante disco Belezas São Coisas Acesas Por Dentro, no qual empresta sua voz a hits que se tornaram famosos na voz de Gal.
O resultado é surpreendente. Filipe Catto consegue agregar à vibe tropicalista de Gal Costa com sua estética algo suja, punk/ grunge, ressoando musicalmente a alguns dos principais álbuns indie. As guitarras poluídas já ecoam na abertura do disco, com “Lágrimas Negras”, de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, que contém o verso que batiza a obra.
Soma-se ao disco a interpretação rara dessa cantora dramática, de voz rara, que está mais interessada em tocar o coração dos ouvintes do que em ser formalmente perfeita.
Uma escolha acertada que já se emenda a “Tigresa”, uma das canções mais sensuais eternizadas por Gal. Na voz de Filipe, sua tigresa parece ganhar uma outra tonalidade, tingida por sua identidade enigmática e provocativa – este é o primeiro disco da artista após se assumir como mulher trans não-binária. Seu mergulho na música torna ainda mais especial versos icônicos como “com alguns homens, foi feliz, com outros, foi mulher”.
Filipe também homenageia a leveza da Gal baiana, ao incluir no repertório trechos de “Joia” e “Oração de Mãe Menininha”. Evitou, contudo, agregar no disco músicas que talvez fossem escolhas mais óbvias, como “Chuva de Prata” (presente no show com o qual se apresentou no SESC Pompeia, cujo repertório também inclui as poderosas “Como 2 e 2” e “Sua Estupidez”, de Roberto Carlos, e “Divino Maravilhoso”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil).
A performance de Filipe Catto no SESC – envolvida com uma roupa azul sereia, com um longuíssimo rabo de cavalo e trejeitos sensuais de pura feminilidade – deixa claro: o abraço com Gal se dá mais pelo drama, pela obscuridade e pela entrega ao que talvez se escondesse por trás de seu largo sorriso.
Filipe underground
Nascida em Lajeado, no Rio Grande do Sul, em 1987, Filipe Catto certamente compartilha das referências das bandas e dos artistas que despontaram nos anos 1990, navegando pelo niilismo e pelo ambiente pesado que circundavam a era grunge. Foi um tempo em que muitos músicos entregues à depressão ou às drogas sucumbiram – como Kurt Cobain, Layne Staley, mais tarde Scott Weiland, do Stone Temple Pilots, e Chris Cornell, do Soundgarden -, não antes de deixar um legado que se tornaria perene na vida de tantos jovens crescidos nessa época.
A vibe dos discos dessa fase era quase sempre soturna. Isso se refletia tanto nos temas, quanto nas opções sonoras, focadas sobretudo na “sujeira” noise baseada em guitarras dissonantes, presente em bandas como Sonic Youth. Belezas São Coisas Acesas Por Dentro parece trazer o tempo todo essa sensação, como se ouvíssemos as canções de Gal serem performadas pelos músicos do My Bloody Valentine. Simples e genial.
E, claro, soma-se a isso a interpretação rara dessa cantora dramática, de voz rara, que está mais interessada em tocar o coração dos ouvintes do que em ser formalmente perfeita. Quase como se personificasse uma voz que chora, uma voz que sofre – lembrando, por exemplo, das memoráveis canções violentas de PJ Harvey na época do disco Rid of Me.
A seleção de músicas para o disco é original, além de ser configurada de uma forma fluida em que uma música se emenda na outra. Mas talvez a versão mais inspirada de Filipe esteja na faixa 6, quando canta “Nada Mais” (adaptação de música Stevie Wonder famosíssima na voz de Gal) com uma emoção absoluta e que faz arrepiar a espinha. Um acerto em cheio de Filipe Catto, a nossa riot grrrl que trouxe ao mundo esse belíssimo disco.
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