Há cerca de um ano, Sobrevivendo no Inferno foi selecionado como obra obrigatória do vestibular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sendo posteriormente transposto aos livros pela Companhia das Letras, obra que ganhou novos contornos com o texto de apresentação de Acauam Silvério de Oliveira, professor de Literatura da Universidade de Pernambuco.
Em um dos trechos do texto de apresentação, Acauam procura traduzir para o leitor o impacto no cenário nacional de Sobrevivendo no Inferno. O professor coloca a obra em pé de igualdade a Memórias Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis) e Terra em Transe (Glauber Rocha), por exemplo. Também cita o ensaísta Francisco Bosco, para quem a obra fez com que os debates identitários extrapolassem as fronteiras da academia e dos movimentos sociais.
Sobrevivendo no Inferno deu novos contornos ao termo “periferia”, como aponta o sociólogo Tiaraju D’Andrea. Não apenas mais um signo de pobreza e violência, mas, também, cultura e potência. Ou seja, estamos, desde então, diante de novas elaborações coletivas de referência à periferia. Ainda que à margem, agora esses cidadãos periféricos se apropriam de sua própria imagem, construíram uma voz própria. Dessa nova realidade surge a Imperador Sem Teto, de Curitiba, mas também das periferias do Brasil.
Entre personagem e peça, numa espécie de jogo de espelhos, Igor Kierke, criador do projeto, perpassa diferentes linguagens artísticas para compor uma pequena ópera sobre a periferia contemporânea, sujeito ainda indissociável da violência urbana e da omissão do Estado, mas também atuante na perpetuação dos abismos entre as esferas da sociedade, seja de forma passiva ou ativa. Hoje, nem mesmo o cidadão periférico, a quem a construção de uma voz própria, vinte anos atrás, representava sua legitimação, se vê distanciado das idiossincrasias que marcam nossa identidade patriótica.
Entre personagem e peça, numa espécie de jogo de espelhos, Igor Kierke, criador do projeto, perpassa diferentes linguagens artísticas para compor uma pequena ópera sobre a periferia contemporânea.
É por isso que o contexto sonoro, lírico e teatral composto por Kierke e seu Imperador Sem Teto ganha nuances mais politizadas mesmo quando sua ópera-rock-rap-trap apenas e tão somente compõe um registro de paisagem sonora. Parece haver ali uma busca de construir uma fraternidade de iguais no meio desta comunidade periférica, cuja identidade não está simplesmente voltada ao que vive em ambiente físico à margem das grandes cidades, mas a sua sexualidade, seu gênero, seu poder político. O sujeito periférico de Kierke é distinto neste ponto dos de Mano Brown e cia, mas converge quando sua proposta também confronta o ideal de “conciliação racial”, que parece revisitado nestes tempos de governo Bolsonaro.
Sobrevivendo no Inferno deu início ao deslocamento da canção brasileira para outros pilares de organização de sentido, como aponta Acauam, justamente o que resultaria em LADO A, o primeiro álbum de Imperador Sem Teto, lançado no último mês de junho. E essa mudança é fundamental para a existência do projeto de Kierke, justamente por evidenciar a complexidade de uma realidade que segue garantindo aos que estão à margem desse projeto de país a periferia da vivência social.
E se é possível fazer esta relação entre obras aparentemente tão distintas, também é viável afirmar que Kierke busca com LADO A sedimentar bases para novas vivências. Ou seja, nem disco nem espetáculo se fecham em sentido, pelo contrário, são obras abertas a diferentes compreensões e assimilações. E do impacto causado pelas canções no disco, espera-se que surjam novos diálogos, capazes, inclusive, de contradizer a análise deste jornalista. Oportunidade imperdível, por sinal.