Guadalajara, 02 de novembro de 2017. Desembarco na segunda maior cidade mexicana às dez horas da noite, no último dia das celebrações do tradicional Día de Los Muertos. Javier, o motorista do Uber que tomei do aeroporto ao hostel, diz que talvez um ou outro cemitério deva receber festejos e homenagens aos falecidos ainda nessa madrugada, no Dia de Finados no Brasil, porém a grande movimentação aconteceu mesmo nos últimos dias de outubro e durante o primeiro de novembro. Perder uma festividade como essa por poucas horas é quase como pegar a xepa da feira que acabara de se encerrar.
Por outro lado, cheguei às vésperas de uma outra data legal, nesse caso para a música contemporânea do Mexico. Nessa sexta-feira, dia 03 de novembro, será oficialmente lançado Disco Popular, quinto álbum do irreverente projeto Instituto Mexicano del Sonido (IMS), comandado pelo DJ, produtor e intérprete Camilo Lara.
No exato momento em que redijo este texto (1:21 da madrugada), Disco Popular ainda não fora disponibilizado para audição na internet, o que me faz perder a boa chance de uma resenha. Mas se você nunca ouviu falar de Instituto Mexicano del Sonido ou de Camilo Lara, me sinto na obrigação de me agarrar nesse gancho e apresentar alguns dos frutos mais inventivos e consistentes da música contemporânea alternativa do país de Frida Khalo.
El Jefe: Camilo Lara, uma maquina de catalisar sons
Nos últimos 20 anos, Camilo Lara se estabeleceu como um dos personagens mais importantes da cena musical alternativa do México. Isso porque nesse período de tempo destacou-se não apenas por seus projetos musicais individuais e colaborativos (Instituto Mexicano del Sonido, Compass e Mexrissey), mas por seu primoroso trabalho em grandes gravadoras como a EMI (nos bastidores das produções de bandas como Plastilina Mosh e Titan) e em selos 100% independentes que alavancam as fervilhantes cenas alternativas mexicanas. [highlight color=”yellow”]Lara é uma referência em pesquisa e produção musical e tem um perfil provocador, criativo e inquieto.[/highlight]
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Em 2006, uma mescla de fragmentos de cumbias, cha cha chas, uma base eletrônica brincalhona, textos do escritor Juan Rulfo recitados pelo próprio Rulfo misturados com todos esses ritmos e alguns estilos mais, formam o álbum de estreia de Camilo Lara com o seu Instituto Mexicano del Sonido: Mejico Maxico. A esquizofrenia alegre e aparentemente despretensiosa dessa estreia marca muito da identidade do projeto IMS, que evolui conceitos estéticos e temáticos a cada novo trabalho de estúdio.
No ano seguinte, sai Piñata com três fortes singles: “El Microfono” e “Alocatel” foram parar na trilha sonora dos videogames FIFA 08 e FIFA 10, respectivamente, e a faixa “A Girl Like You” também virou trilha da serie de TV Californication. Quem não está acostumado com a linguagem do Instituto Mexicano del Sonido pode sentir uma estranheza inicial pelo seu tom experimentalista bem-humorado, mas o casamento entre bases eletrônicas, um pouco de hip hop e ritmos populares com letras irreverentes resulta em uma espécie de música de festa que é absolutamente possível ouvir em casa, na rua ou no trabalho. Sem dúvida, uma das grandes cartadas do projeto.
https://www.youtube.com/watch?v=f3z81DxFt0I
Nos últimos 20 anos, Camilo Lara se estabeleceu como um dos personagens mais importantes da cena musical alternativa do México.
Cultura x Gentrificacao
Os elementos “cumbieros”, identificados em faixas da discografia de Camilo Lara, talvez estejam mais do que nunca em grande destaque atualmente. A cúmbia, entre outros ritmos populares da América Latina, teve um expressivo eco midiático e um boom de consumo nos últimos anos por todo o continente. Para Lara, [highlight color=”yellow”]o recente fenômeno de supervalorização da cúmbia pode ser comparado com o fenómeno urbanístico da gentrificação.[/highlight]
Cerca de duas décadas atrás, cúmbias latino-americanas tradicionais começaram timidamente a ser incorporadas por DJs em seus sets durante festas alternativas. Muitas dessas festas se tornaram famosas e cada vez mais pessoas passaram a ouvir e tocar cúmbia. Progressivamente, esse gênero musical quase folclórico, criado e mantido por camadas populares da sociedade, tornou-se algo cool e foi levado a grandes festivais voltados ao publico jovem, como o Vive Latino e o Lollapalooza. Mas no caso do Instituto Mexicano, é injusto resumir sua obra a releituras modernas e samplers de cúmbias antigas. Há uma extensa bagagem de pesquisa e produção musical que vai muito além de um único estilo, numa ausência de comodismo sonoro.
Humor x Politica
Mais um álbum de estúdio (Soy Sauce, de 2009) e um EP (Suave Patria, de 2010), lançados depois de Piñata, acontece uma brutal mudança de tom do Instituto Mexicano del Sonido. Em 2012, surge Politico, e como o próprio nome já diz, algumas doses de humor e descompromisso foram trocadas por punhados de crítica social. O México e um país em convulsões constantes, marcado por centenas de conflitos sociais e problemas como narcotráfico e violência extrema em algumas de suas regiões. Com Politico, Camilo Lara prova que consegue fazer um trabalho de consciência social sem ser panfletário e, ao mesmo tempo, extremamente dançável. A letra da música abaixo é uma das mais impactantes do IMS.
https://www.youtube.com/watch?v=gpybihsaV8Y
Com Disco Popular, a volta do IMS promete mais um álbum com bastante personalidade para somar a discografia. Produzido pelo brasileiro Mario Caldato – conhecido por seu trabalho com os Beastie Boys – Disco Popular foi gravado entre as cidades de Kingston (Jamaica), Cidade do México e Tucson (Arizona). Aproveite que está quentinho ouça já.