Qualquer um que tenha “habitado” no mundo da música alternativa dos anos 90 deve se lembrar que uma das bandas mais cultuadas desta safra era o Sonic Youth. No universo indie (termo quase esquecido hoje, ao que me parece), você podia até não digerir exatamente o que esta banda – marcada por uma música arrojada, pouco pop, com alta quantidade de guitarras dissonantes e distorcidas – estava fazendo, mas era quase um sacrilégio desrespeitá-la ou considerá-la pouco importante.
Por onde passou, o Sonic Youth angariou um séquito de admiradores. A pegada cult se fortificava por um trabalho fortalecido nas identidades visuais (como não lembrar das camisetas de Washing Machine, Dirty e Goo?) e pela presença de um casal 20: Kim Gordon e Thurston Moore. Juntos da filha Coco, nascida em 1994 – o mesmo ano da morte de Kurt Cobain –, eram a própria definição do cool, reverberando a possibilidade de conciliar amor e uma vida no rock.
Vinte e sete anos depois, o casamento revela não ser assim tão perfeito: Thurston troca Kim por outra. Em 2011, o inevitável fim do Sonic Youth. O último show, no Festival SWU, em Paulínia (SP), é um presente a todos os sortudos na plateia – embora durante a última turnê na América Latina, Kim e Thurston não se falassem mais. Em 2015, aos 62 anos, Kim lança A Garota da Banda (editora Rocco), uma mistura de autobiografia, ensaio e relato histórico não só sobre sua carreira e a do Sonic Youth, mas um retrato honesto e delicioso sobre a cena musical do rock que emergiu nos Estados Unidos nas décadas de 1980 e 1990.
Definindo-se como uma típica garota californiana, Kim Gordon aborda a relação com a família, em especial com o irmão Keller. Há uma comovente autoanálise da relação tortuosa com o irmão mais velho, a quem temia e respeitava durante a infância e que seria diagnosticado com esquizofrenia. Kim ainda revela seu processo de consolidação como artista – não exatamente como uma musicista, o que se desdobrou em sua vida algo ao acaso, mas como uma artista visual interessada em diversas formas de expressão. O livro é uma fonte riquíssima para entender as referências que permearam todas as linguagens empregadas pelo Sonic Youth e que tornaram a banda quase como uma plataforma multimidiática, preocupada com cada detalhe de sua arte.
Enquanto relato de uma época, A Garota da Banda deleita os leitores especialmente por causa das leituras particulares, sem papas na língua, feitas por Kim em relação aos demais membros da cena musical.
Enquanto relato de uma época, A Garota da Banda deleita os leitores especialmente por causa das leituras particulares, sem papas na língua, feitas por Kim em relação aos demais membros da cena musical.
Sabemos, por exemplo, das impressões que tinha sobre Madonna no início de carreira (apresentando uma bela análise de discurso sobre a persona midiática da cantora no clipe de “Like a Virgin”), quando seu apelo sexual se dava pela comovente confiança e não pelo corpo perfeito.
Fala de Kurt Cobain, com quem desenvolveu uma ligação forte, cuja sensibilidade e fragilidade se transformavam em automutilação no palco (“quando ele se jogava na bateria era como se estivesse fazendo uma dança da morte negociada em segredo”).
Opinião diametralmente oposta é expressa em relação a Courtney Love, descrita como egocêntrica (“Courtney era o tipo de pessoa que deve ter passado muito tempo durante a infância olhando para o espelho para praticar seu olhar para a câmera”) e ambiciosa, não no sentido louvável da palavra. Kim põe sob desconfiança o fato de que Live Through This, disco que estourou o Hole, banda de Courtney Love, tenha sido lançado uma semana após a morte de Kurt Cobain.
Obviamente, como toda mulher, Kim Gordon ainda gasta algumas linhas para analisar a relação com Thurston, lembrando de suas expectativas e sonhos e das pistas de que alguma coisa estava errada desde o início (cita as posturas explosivas e controladoras do marido, quebrando grampeadores na parede quando irritado), o que ela, aparentemente, não enxergava. Ainda que suas leituras sejam as de uma mulher ainda magoada, ela não deixa de pontuar as qualidades e a admiração pelo ex-marido. Não deixam de ser divertidas as cutucadas que dá em Thurston, quando recorda que se atraiu por ele em parte por sua autoconfiança, que mais tarde se revelaria mais um comportamento de fachada do que algo essencialmente genuíno. Ok, tudo em nome da honestidade e da franqueza.
Mas a grande cereja do bolo se encontra nos relances ensaísticos trazidos por Kim quanto àquilo que viu e viveu, desenvolvendo análises e teorias diversas. Filha de um sociólogo professor na UCLA, Kim Gordon apresenta uma tese sobre uma espécie de “sociologia masculina da música”, na qual argumenta que muitos homens montam bandas no intuito de conseguir se relacionar com outros homens, o que se dá por intermédio de um terceiro elemento, a música que criam. Os homens, segundo ela, não tendem a se relacionar diretamente uns com os outros, e utilizam seus instrumentos como uma espécie de catalisador da amizade.
Seu olhar sobre o mundo, essencialmente feminino e feminista – a começar pelo título escolhido à obra: o processo de aceitação de ser “a garota da banda”, papel do qual procurava se desvincular – é o mote para que chegue a conclusões bastante incisivas. Ao criticar a apropriação do termo “girl power” pela indústria de entretenimento (associado nos anos 90 ao grupo Spice Girls, “criado por homens”) e pelo feminismo domesticado em performers como Lana Del Rey, ela deixa clara a sua visão sobre os papéis reservados às mulheres na mídia, mesmo no âmbito do rock.
“Em geral, as mulheres não têm realmente a permissão para mandar ver. Culturalmente, nós não permitimos que as mulheres sejam tão livres como elas gostariam, porque isso é assustador. Nós ou rejeitamos essas mulheres ou as consideramos loucas. Mas ser a mulher que ultrapassa os limites significa que você também traz aspectos menos desejáveis de si mesma. No final do dia, é esperado que as mulheres sustentem o mundo, não que o aniquilem”.
Resumindo, A Garota da Banda funciona magnificamente como: um retrato do espírito de uma época e das mudanças culturais assinaladas durante estas décadas; uma análise bastante perspicaz das contribuições artísticas de uma banda seminal nos anos 90 que, de alguma forma, foi “genitora” de boa parte do que surgiria depois; mas, sobretudo, como uma obra deliciosa de uma das mulheres mais inspiradoras do mundo da música.
A GAROTA DA BANDA | Kim Gordon
Editora: Fábrica231;
Tradução: Alexandre Matias e Mariana Moreira Matias;
Tamanho: 288 págs.;
Lançamento: Agosto, 2015.
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