A MPB é recheada de uma profusão de cantoras lésbicas. Mesmo assim, a vida da mulher lésbica raramente é pano poético para as canções, que sempre habitam e se escondem sob um eu lírico mais dúbio e multi-facetado (poucas artistas iam além disso; talvez possamos citar Angela RoRo e Marina).
Porém, a nova geração tem rasgado esse manto sacrossanto sobre ser lésbica na música, acabando de vez com essa história de “sabemos que elas são, mas não se toca nesse assunto”. Aíla e Márcia Castro são exemplos fortes de artistas que versam sobre a sexualidade da mulher lésbica. E a mais recente adesão a esse cenário se chama Maria Beraldo.
Seu disco de estreia, CAVALA, apresenta um olhar quase autobiográfico de Maria, porém ela não é nenhuma novata: clarinetista, claronista, cantora e compositora, ela é integrante da excelente banda Quartabê. Beraldo também faz parte da banda de Arrigo Barnabé e já colaborou com um gama de artistas, que inclui Negro Leo, Iara Rennó, Rodrigo Campos, Laura Diaz, Dante Ozzetti e Rômulo Fróes.
Lançado pelo selo RISCO, CAVALA tem uma narrativa poética que reconstrói o que é ser uma mulher lésbica para Maria Beraldo e, nesse sentido, acaba contemplando um universo de possibilidades na ousadia de “ser o que se é”.
Historicamente, o cavalo tem associações simbólicas com força, poder e imponência, servindo para que o homem reafirme sua força ao domá-lo, por exemplo. Mesmo assim, ele ainda traz ecos de um instinto selvagem, um tanto quanto indomável e belo. No horóscopo chinês, o signo de cavalo é essa intersecção entre força e instinto.
Utilizando-se da palavra “cavala”, termo comum na linguagem coloquial brasileira, é como se Maria Beraldo assumisse para si a força desse animal e desse simbolismo, aqui no feminino, habitando seu próprio universo.
De caráter bastante autoral, a única faixa não assinada por Beraldo em CAVALA é “Eu Te Amo”, de Chico Buarque, uma faixa bastante formal em sua construção poética e que se transforma nesse universo de amor entre mulheres do disco de Maria.
Em contraponto à estrutura de Buarque, as canções autorais de Maria Beraldo são mais quebradiças, de poesia curta, onde cada pequena palavra se desdobra em sentidos e significados, para que faixas de pouco mais de um minuto transbordem para além de si.
As canções autorais de Maria Beraldo são quebradiças, de poesia curta, onde cada pequena palavra se desdobra em sentidos e significados
“Da menor importância”, por exemplo, é como um outro olhar sobre a mesma cena cantada por Caetano Veloso em Da maior importância. Diferente da verborragia da canção setentista do baiano, a de Beraldo é simples e delicada, podendo muito bem habitar o próprio universo de Veloso, se cantada ao lado de “Amor mais que discreto”, por exemplo. Já a canção “Rainha”, por outro lado, é curta e estranha, lembrando a fase em que Caetano trabalhava ao lado de Arto Lindsay (lembram de “Ela Ela”?).
Além dos olhares sobre o seu presente, Maria Beraldo faz um passeio por aquelas que vieram antes: as mulheres que a construíram, sua mãe, suas avós, como na forte “Maria”. Ou ainda nas mulheres que a formam e a instigam, como na belíssima “Amor Verdade”.
A faixa “Tenso”, que conta com a guitarra de Tim Bernardes, foi lançada como single recentemente. Simples e pop, a canção ganhou um lindo clipe dirigido por Laura Diaz (aka Carneosso, do Teto Preto), vídeo que ganhou a restrição de idade do YouTube, já que peitos femininos, quando não hiperssexualizados, incomodam muito.
Rápido e certeiro, CAVALA se encerra com a pop e divertida “Gatas Sapatas”. O título talvez mais uma vez converse com Caetano Veloso e sua “Gatas Extraordinárias”, porém o universo da canção se conecta mais com as construções de Kassin (em alguma medida, eu imagino um EP em que a Céu cante “Calça de Ginástica” seguida de “Gatas Sapatas”, como faixas-irmãs).
CAVALA se torna uma viagem intensa pelo universo pessoal de Maria Beraldo e, por ser tão íntimo, o disco acaba sendo universal. Mesmo com todas essas conexões e links que desenhei acima, esse disco é claramente um trabalho autoral e conectado ao nosso tempo, que apresenta Beraldo como uma voz poética forte e necessária.
É difícil não se sentir contemplado pelas diferentes reflexões propostas pelas canções, já que o disco é basicamente sobre compreender a si mesmo e se aceitar nesse mundo que tenta dizer todo dia que não devemos ser o que somos. Mas não adianta, somos cavalas não domadas.
NO RADAR | Maria Beraldo
Onde: São Paulo, São Paulo;
Quando: 2017;
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