Ao lançar Fossora, seu décimo álbum de estúdio, Björk parece nos mostrar, além de seu natural esplendor artístico, um cenário de transformação bastante íntimo.
Há muito que não se espera da cantora que ela faça malabarismos, reinvente a roda (ou o pop), mas é certo que a cada nova obra (com destaque especial a partir de Medúlla) a islandesa vai entregar algo conceitual, que nos obrigará a revisar aspectos do que entendemos por arte.
Esse universo próprio que a cantora criou (e do qual se reapropria a cada novo trabalho) é complementado por uma linguagem também única, capaz, ela sim, de capturar os mais intrincados fenômenos que preenchem a existência de Björk.
Em Fossora, a artista está mais interessada na união do que na fusão, em ser mais sensível do que cerebral.
No novo disco, a artista reconstrói a forma feminina de fossore, palavra do latim que significa escavadora, para, segundo sua interpretação, “aquela que cava”, um título bastante apropriado, pois a islandesa vai em busca de suas raízes, encontrar processos que consegue fazer soarem inovadores.
Fossora é uma nova comprovação de que Björk se recusa a fazer a mesma coisa duas vezes. O álbum é notável pela maneira como consegue aludir ao que foi enquanto olha para a frente.
É inegável os rastros de seu passado, em especial a influência do produtor Arca nos dois últimos discos. Gravado quase todo durante a pandemia, Fossora traz o isolamento, a perda e o luto do período, que se cruzam com a morte da própria mãe, Hildur Runa Hauksdóttir, em 2018.
Depois do distanciamento da Covid-19, a artista islandesa se cerca de convidados, como o músico indonésio Kasimyn, seus compatriotas do coro The Hamrahlid, o quarteto de cordas Siggi e o músico Serpentwithfeet. Ela também traz Bergur Þórisson para a direção criativa do disco, colaborador frequente da artista.
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Percebe-se desde as primeiras notas uma adequação entre forma e conteúdo. Björk fala de maneira eloquente sobre hereditariedade e ancestralidade, enquanto procura desdobrar suas canções em melodias e timbres que se conectam. Parece lógico convidar o filho Sindri (“Ancestral”) e a filha Isadora “Her Mother’s House”).
Em Fossora, a artista está mais interessada na união do que na fusão, em ser mais sensível do que cerebral, ainda que o disco esteja recheado de formas abstratas de tratar as temáticas que traz.
O álbum já se inicia de forma ímpar em “Atopos”. As batidas gabber, subgênero do techno hardcore originado na Holanda, com bumbos em batidas fortes e rápidas, são entrelaçadas pela força gravitacional da voz da islandesa. Sua melodia é poderosa, mas certamente inquietante, desafiadora.
Como não oferece nada pop, no sentido mais convencional de determinação do gênero, as canções não nos arrebatam em uma primeira audição. O álbum não é “fácil”, mas é deveras rico e belo. Um disco de encontro, não de passeio, que convida a olhar para dentro, que exige do ouvinte. É música com M maiúsculo, complexa, mas sem ser um rebuscado agressivo.
Os instrumentos de sopro ocupam grande espaço nas canções de Fossora, mas não se trata de música erudita, ainda que Björk flerte com o cânone das tradições islandesas.
Ele é o mais profundo exemplo do que a artista é, entre todas suas contradições e ambiguidades. Consegue ser vivaz, efervescente, e, ainda assim, conflitante, como uma pintura feita de pinceladas, não de linhas contínuas. É o que só Björk é capaz de ser.
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