Joyce é um dos exemplares das muitas cantoras de um nome só que abundavam pelo país nos anos 1970: Diana, Cláudia, Célia, Vanusa, Amelinha, Simone, Marina, entre outras, todas difíceis de serem encontradas nesses tempos de Google. Atualmente, por exemplo, se você jogar Joyce no Google, tudo que aparecerá será relacionado à personagem de Maria Fernanda Cândido na novela A Força do Querer.
Eu conheci Joyce de um modo inusitado: há alguns anos, entrevistei a cantora Ariana Delawari, artista norte-americana de ascendência afegã que foi apadrinhada por David Lynch, e fiz a clichê pergunta: “você conhece música brasileira?”. Sua resposta foi que estava apaixonada por um disco de uma dupla chamada Nelson Ângelo e Joyce.
Eu conhecia Nelson do Clube da Esquina, mas nunca tinha escutado a tal Joyce. Escutei com bastante afinco naquela época o disco que a dupla lançou em 1972. Com o tempo, conheci outros discos da cantora e compositora, especialmente seus trabalhos do início dos anos 80, como os belos Feminina e Água e Luz. Esse ano, por acaso, acabei caindo em seu disco Passarinho Urbano, de 1976, gravado na Itália, e fiquei encantado, naquele nível de encanto do tipo “preciso falar sobre isso de algum modo”.
Com 18 faixas, Passarinho Urbano é construído como um disco para ser escutado na íntegra, já que muitas dessas faixas aparecem quase como vinhetas, curtas e certeiras, a encaixar um cenário amplo, que funciona como uma polaroide do Brasil.
Em 1975, Joyce estava em turnê pela Itália com Vinícius de Moraes e Toquinho, quando o produtor Sergio Bardotti propôs a gravação de um disco que contemplasse certa urbanidade brasileira. Em meio à ditadura militar e à forte censura artística, Joyce escolheu um repertório de grande força política, que fala sobre a violência, a fome e a dura vida do brasileiro.
Gravado apenas em voz e violão, Passarinho Urbano reúne faixas de Milton Nascimento, Edu Lobo, Caetano Veloso, Zé Keti, Capinam, Mauricio Tapajós, Paulo César Pinheiro, Paulinho da Viola e Chico Buarque, em grande parte faixas que haviam sido censuradas pelo governo militar. Joyce, que é uma grande compositora, nesse trabalho assina apenas a faixa “Passarinho”, uma faixa que transforma em canção o clássico poema de Mario Quintana.
O disco de Joyce traz, na capa, uma ilustração de uma mulher negra, de black power, a beber uma Coca-Cola, uma escolha curiosa para uma cantora branca de cabelos negros e lisos, nascida e criada na zona sul carioca, que aqui canta sobre temas que não são necessariamente sua realidade (a imagem de capa conversa com os versos de “Joia”, faixa de Caetano Veloso, que diz “A menina muito contente / Toca a Coca-Cola na boca”, faixa que abre o disco).
É nesse contexto de uma arte que se comunica com seu tempo e que consegue perdurar, atemporal, que ‘Passarinho Urbano’ funciona como um dos melhores discos de Joyce.
Esse detalhe é interessante neste 2017, quando se debateu aos montes a figura de Mallu Magalhães a entoar seus sambinhas e dizer asneiras como “quem acha que branco não pode cantar samba”. Mallu vive deslocada da realidade brasileira, algo bem delineado na crítica de Marcelo Costa sobre o disco Vem.
Nesse sentido é que existe um contraste entre o universo ensimesmado de Mallu e o disco de Joyce, outra branca a cantar sambas, já que Passarinho Urbano é um retrato perfeito e bem delineado de seu tempo, enquadrando as agruras do tal “milagre econômico” brasileiro do final dos anos 70 de forma sincera e pungente.
É nesse contexto de uma arte que se comunica com seu tempo e que consegue perdurar, atemporal, que Passarinho Urbano funciona como um dos melhores discos da carreira de Joyce. De caráter quase minimalista, o disco de 1976 foi lançado em 77 no Brasil e passou despercebido por aqui na época. Não obstante, quando o país parece viver um cenário de retrocesso, é um bom momento de se redescobrir esse disco. É um bom momento de se reouvir a “Marcha da Quarta-Feira de Cinzas” e se entoar em uníssono: “E no entanto é preciso cantar / Mais que nunca é preciso cantar / É preciso cantar e alegrar a cidade”.
Para quem se encantar com o universo musical de Joyce, vale saber que ela segue em constante produção, com lançamentos pela Biscoito Fino. Neste 2017, Joyce lançou o ótimo Palavra e Som, disco de sambas, formado em grande parte por composições próprias.
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