Um disco transcendental, etéreo, dançante e espiritual, nascido da mente e da alma de uma recém mãe que reencontra seu lugar no mundo. Os adjetivos anteriores são uma tentativa de descrever Ray of Light, obra-prima lançada há 25 anos por Madonna e que só melhorou com o tempo.
Lançado no dia 3 de março de 1998, com 13 músicas marcadas pelas batidas eletrônicas e muita influência do trip hop e drum and bass, o sétimo disco foi gestado pela cantora logo após ela dar à luz a sua primeira filha, Lourdes Maria.
Esta é uma informação importante, pois ajuda a entender a quebra representada por Ray of Light dentro da trajetória musical de Madonna. Ícone máximo do pop dos anos 80 (ao lado de Michael Jackson), Madonna amadureceu sua imagem da ingenuidade sexy de “Like a Virgin”, e passou a trilhar sua carreira por caminhos mais ousados.
Em 1992, ela lança Erotica, um polêmico disco em que foca na concretização de seus desejos sexuais. Dois anos depois, ela envereda por um lado mais romântico com as baladas de Bedtime Stories e o mais apagado Something to Remember, que já propunham uma fuga do fetichismo extremo do disco anterior.
Ainda que Ray of Light pareça seguir a mesma linha de um disco mais suave, ele é infinitamente superior aos seus dois antecessores. Não por acaso, ele configura entre os top 3 de álbuns mais vendidos da cantora (só perde para True Blue, de 1986, e Like a Virgin, de 1984).
Ao lado do produtor inglês William Orbit, Madonna apresenta-nos aqui uma nova versão de si, pós-maternidade, muito mais plena e conectada com seu mundo interior. Belíssima, ela surge aos 39 anos, nas imagens do disco e dos videoclipes, com longos cabelos loiros e uma estética suave inspirada em várias referências indianas.
‘Ray of Light’: maternidade, Cabala e baladas dançantes
A maternidade representa muito mais coisas para Madonna. É a chance que ela tem de se aproximar de temas transcendentais, como o contato profundo com a espiritualidade.
Esta sensação já começa na faixa inicial. Em “Drowned World / Substitute for Love”, Madonna claramente fala da filha: “eu troquei fama por amor sem pensar duas vezes/ tudo se tornou um jogo bobo/ algumas coisas não podem ser compradas”. Fica explícito que a Madonna hedonista estava agora hibernando. No videoclipe de “Drowned World”, a última cena mostra Lourdes correndo para os seus braços, enquanto ela canta: “Esta é a minha religião”.
A fluidez da água do “mundo submerso”, vale dizer, evoca várias imagens do feminino, tal como o líquido amniótico que acolhe o bebê que ainda está no útero. Este elemento retorna em seguida na levemente dançante “Swim” e no hit eletrônico mezzo gótico “Frozen” (que, inclusive, foi lançado dias antes de Ray of Light).
A maternidade representa muito mais coisas para Madonna. É a chance que ela tem de se aproximar de temas transcendentais, como o contato profundo com a espiritualidade. Aqui sabemos que a mais popular cantora do mundo está se encontrando através da Cabala, além de estar estudando o hinduísmo e o budismo. Sua dedicação a estas religiões se evidenciam ao longo do repertório, como na música-mantra “Shanti/ Ashtangi” (em que ela canta um texto em sânscrito da Yoga Tavalari).
Contudo, o romantismo segue presente no disco. Ele está pulsante em “To Have and Not To Hold”, que tem tons de bossa nova eletrônica, e “The Power of Goodbye” – em cujo clipe, Madonna, mais linda que nunca, joga xadrez com o ator Goran Višnjić (o dr. Luka Kovač de ER), ao qual se referiu na época como o “homem mais lindo do mundo”.
Mas, a julgar pela visão carregada por Ray of Light, a essencialidade da alma é atravessada pelo corpo e pela dança. É por isso que o ápice do disco chega nas pulsantes “Nothing Really Matters”, “Sky Fits Heaven” e, claro, na apoteótica “Ray of Light”, talvez uma das músicas mais plenas de alegria já criadas por alguém. É difícil não se comover quando Madonna evoca, a plenos pulmões, o refrão: “Eu sinto como se tivesse chegando em casa” – traduzindo, em uma frase apenas, a epifania da espiritualidade plena.
A verdade é que, 25 anos depois, ainda resta a sensação de que talvez Madonna tenha nos entregado aqui o seu disco mais pessoal. E que segue brilhante, não importa quanto tempo passe.
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