Todo mundo que já era crescidinho no início dos anos 1990 pode corroborar o que escrevo aqui: os Pixies são a banda alternativa (ou indie, como se falava nesta época) mais influente de todos os tempos. Nirvana (Kurt Cobain chegou a declarar uma vez que formou a banda querendo soar como Pixies e assumidamente os imitou em “Smell Like Teen Spirit”), Radiohead, Blur e Weezer são apenas alguns dos “descendentes” do grupo capitaneado por Black Francis (mais tarde, Frank Black) ao lado de Kim Deal, David Lovering e Joey Santiago.
Mas o que há de tão mágico neste grupo? Uma boa resposta pode ser encontrada ao revisitarmos Surfer Rosa, álbum de estreia da banda (antes disso, eles haviam gravado apenas o EP Come On Pilgrim), que celebrou no dia 21 de março seu aniversário de 35 anos. O disco – que tem pouco mais de 30 minutos – foi celebrado pela crítica como o grande lançamento de 1988, e lançou as bases do estilo punk/ surf/ pop/ surreal que criaria o legado do Pixies. Até hoje, pode-se enxergar resquícios de um culto em torno do quarteto.
Esta história começa em Boston, quando um sujeito chamado Charles Thompson IV convence seu amigo Joey Santiago a formar uma banda. Eles colocam um anúncio na revista Boston Phoenix, dizendo que procuram um baixista “sem habilidades”. Quem responde é Kim Deal, que nem tocava baixo. Ela leva consigo o baterista David Lovering, que era amigo de seu marido. Forma-se então os Pixies, banda que provavelmente jamais dimensionaria, nesta época, qual seria o alcance de sua influência.
Depois de um EP lançado em 1987, que chamou mais atenção no Reino Unido que nos Estados Unidos, os Pixies passam a trabalhar com o produtor Steve Albini (que, no futuro, seria contratado pelo Nirvana para produzir Nevermind) em seu disco de estreia. Em apenas 10 dias de trabalho, nascia Surfer Rosa, cujo nome já deixava claro as referências culturais de Black Francis (que havia morado um tempo em Porto Rico e gostava de cultura latina).
Vale lembrar que, no início dos anos 1990, a música ainda era marcada pelos exageros e os excessos das bandas hard rock, como Guns N’ Roses, Mötley Crüe e Skid Row. Os Pixies, portanto, apostavam em algo que ia na contramão: na simplicidade dos poucos acordes, nos riffs rápidos, nas letras que parecem sem pé nem cabeça e nos refrões grudentos.
Surrealismo, sexo e catolicismo
A capa de Surfer Rosa não é um mero detalhe: ela explica bem qual é o “universo” que Frank Black e seus asseclas querem que adentremos. Em uma imagem PB que remete ao trabalho do fotógrafo Man Ray, vemos uma dançarina com saia de flamenco e seios à mostra. Na parede, um crucifixo pendurado e outros restos de imagens: um peixe, um pedaço de um violão, pôsteres rasgados.
As chaves de leitura são claras: Surfer Rosa adentra no sagrado e no profano, mas, sobretudo, na esfera do surrealismo. As músicas do disco destacam o sexo, os corpos quebrados (mutilações parecem ser tema recorrente na banda), os trechos de letras em espanhol, o deboche com o catolicismo, o baixo e a bateria marcados, os “duelos” vocais deliciosos entre Frank Black e Kim Deal. Os Pixies, como nós amamos, já estão lá.
Ouvir Pixies é notar a genialidade da simplicidade. Tem algo de Ramones: qualquer um que aprenda um pouquinho de baixo e guitarra consegue tocar uma música deles.
A viagem começa com “Bone Machine”, que já abre quebrando tudo. Frank Black e Kim Deal intercalam o vocal daquele jeito desajustado (como se fosse um “anti-jogral”) que se tornaria a assinatura da banda. Eles seguem cantando juntos em “Break my Body” (mais uma vez, ossos e corpos quebrados se repetem).
Ouvir Pixies é notar a genialidade da simplicidade. Tem algo de Ramones: qualquer um que aprenda um pouquinho de baixo e guitarra consegue tocar uma música deles. Mas ninguém mais criou canções tão marcantes como essas.
E Surfer Rosa carrega vários clássicos. Podemos citar Gigantic, a única composta por Kim Deal (cuja personalidade sempre duelou com o líder – não por acaso, ela apareceria muito mais depois, com a formação do Breeders). O trocadilho é pobre, mas não dá para deixar de dizer que esta é uma canção gigante e, por que não, bastante romântica. A voz doce e marcante de Kim ecoa para sempre na mente do ouvinte: “Gigantic, a big big love” (e ninguém que toque baixo jamais esqueceu destes riffs).
Há até aqui o que poderia ser um resumo do paradoxo que os Pixies sempre representaram: a ideia de que agressividade e doçura podem ser ofertadas lado a lado, na mesma medida. E isso se segue na divisão entre os vocais amáveis de Kim Deal e os gritos de Frank Black em “River Euphrates” (que, segundo algumas teorias loucas, fala sobre ejaculação precoce!).
Bem na metade do disco, chegamos à música que talvez seja o maior hit dos Pixies: “Where is My Mind”, que muita gente se lembra por conta da famosa cena de Clube da Luta. Nesta canção magnífica, Kim Deal uiva no fundo enquanto Frank Black canta: “com seus pés no ar e a cabeça no chão/ sua cabeça colapsa, mas não há nada nela/ e você se pergunta: onde está minha mente?” (mais uma vez, corpos despedaçados!). Um clássico absoluto.
Em “Cactus” (que foi regravada por ninguém menos que David Bowie, que amava Surfer Rosa), as coisas adquirem um tom mais sexual, mas de um jeito bizarro. As obsessões do vocalista seguem evocando: “sentado aqui num chão de cimento/ desejando que eu tivesse algo que você vestiu/ fira suas mãos num cacto, limpe no seu vestido e mande pra mim”.
Daqui, vamos para as rápidas “Tony’s Theme” e “Oh My Golly”, que parecem pisar um tanto no surf rock. Na última, Francis Black canta versos em espanhol, e a música termina com um monólogo absolutamente estranho. A temática hispânica se segue obviamente em “Vamos”, em que brilha a bateria de David Lovering, Uma canção simples e genial.
Nossa viagem está terminando. Chegamos então em “I’m Amazed”, que inicia com um diálogo nonsense entre os vocalistas (intercalado por risadas) e deságua numa música menos marcante (embora isso não queira dizer muito quando falamos de Pixies). Por fim, chegamos em “Brick Is Red”, em que uma longa introdução instrumental, mais uma vez na esfera do surf rock, em que Kim Deal e Frank Black nos arrastam de novo ao surrealismo: “Não é a minha hora de ir/ Meus olhos mudaram para cor de diamante”.
Com esses 33 minutos de Surfer Rosa, o quarteto de Boston já se fixou em definitivo na história da música. Nada mal para músicos iniciantes. Para nós, fica a certeza de que há 35 anos inauguramos nossa jornada com essa banda que mudou tudo desde a sua chegada.
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