O Brasil é o país que mais mata pessoas transexuais no mundo, segundo dados da ONG Transgender Europe. Em contraponto, o Brasil é o país que mais pesquisa pelo termo “shemale” no RedTube, conforme dados do próprio site. Nesse cenário de violência, preconceito e fetichização, de acordo com Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra), 90% das travestis e transexuais se veem obrigadas a encarar o mundo da prostituição.
Além dessa violência naturalizada, as mulheres trans ainda vivem sob um estigma de que devem se parecer perfeitamente com uma mulher cis. As pessoas, costumeiramente, acreditam ser um elogio dizer “nossa, nem imaginei que você não fosse mulher”. Esse tipo de situação já gerou quadros esdrúxulos em programas de TV, onde as pessoas deveriam adivinhar quem era mulher cis e quem era mulher trans. Nesse cenário obtuso, entre a fantasia sexual e o preconceito, as pessoas querem sempre considerar como aberrações as mulheres como Pepita, funkeira carioca nascida no bairro Marechal Hermes e famosa por seu corpo malhado e curvilíneo, isto é, como ela define, “grandona pra caralho”.
O público não quer considerá-la realmente respeitável pelo simples fato de que não soa suficientemente como uma mulher cis. Seu corpo redesenhado com hidrogel é motivo de chacota e desrespeito, como se seu corpo fosse moldado para nos agradar e não para o simples e bel-prazer dela própria. Enquanto fica se debatendo sobre as pernas de Pepita, ela está usando isso ao seu favor, criando suas músicas e desenvolvendo seu arquétipo de “Grandona pra caralho”.
Uma máquina de gerar memes, muitos apenas a consideram como essa piada (para alguns, inclusive, de mal gosto), mas Pepita, uma mulher trans no funk, que carrega em seu nome o “MULHER”, desdenhando de qualquer pessoa que tente retirar dela esse status, é fundamental para um desdobramento do gênero. Sempre muito bem recebido pela comunidade LGBT, o funk sempre foi um espaço que reverbera machismo, homofobia e violência e ainda tinha espaços pequenos para personas LGBT. Classicamente temos Lacraia, que apresentava-se mais como dançarina do que cantora e trazia consigo todos aqueles arquétipos do gay afeminado que apenas faz rir, como um freak de circo. Nos últimos anos, porém, vimos uma leva de cantoras trans que viu no funk um espaço de abertura, como a MC Trans, a MC Xuxú e a Mulher Banana.
Pepita traz à tona o sexo clandestino, a violência, o preconceito e a resistência.
Mulher Pepita surge nesse novo cenário e impõe-se como cantora e como cronista de seu background. Ela é o caminho natural aberto por artistas como Deize Tigrona, Tati Quebra Barraco e Valesca Popozuda, cantando o funk sensual, como gosta de chamar Deize. Pepita traz à tona o sexo clandestino, a violência, o preconceito e a resistência. Suas músicas falam de personagens suficientemente donas de si e corajosas para deixar aflorar seus instintos e desejos. No início da faixa “Anaconda” (ouça acima), ela verbaliza “eles apontam / falam mal da gente / criticam a gente / mas na madrugada procura a gente pra uma mamada”, reiterando esse cenário entre o fetiche e a negação com a qual a mulher trans é sempre tratada em nossa sociedade.
Pepita, enquanto mulher trans vinda de comunidade, é a representação clássica da Geni. É nela que tacaram pedra, que tacaram bosta. É ela, assim como todas as mulheres trans (especialmente as de baixa renda) que enfrentam cotidianamente a violência, o risco de morte e a falta de espaço no mercado de trabalho. São elas que lidam com uma expectativa de vida de 35 anos! Distante do universo das discussões de gênero, alheia a teoria queer tão falada em corredores de universidades, Pepita passeia naturalmente pelo mesmo cenário que agora é aberto por outras artistas trans, em distintos gêneros. Se o funk da Linn da Quebrada e da Lia Clark se comunicam diretamente com o som de Pepita em seu Grandona Pra Caralho EP, é inegável que sua figura também desestabiliza os estereótipos de gênero assim como, na MPB, fazem Liniker ou as vocalistas de As Bahias e a Cozinha Mineira.
Pode parecer apenas uma piada para muitos, mas Mulher Pepita ocupa um espaço de fala e de liberdade extremamente importante, pois ela não dá as caras só para o lacre no Facebook, ela está lá rebolando para o pessoal do Quintal do Funk em Madureira, ela está cantando para homens heterossexuais que muitas vezes a poderiam agredir se ela não estivesse no palco. Pepita impõe-se além dos espaços pré-estabelecidos e isso é extremamente subversivo. Seu corpo, suas curvas e sua voz são suficientemente poderosos para abrir outros espaços dentro do funk.