Uma mulher é a neta da bruxa que vocês não conseguiram queimar. Uma mulher “não vai aguentar mais ser agredida”, como grita o single-manifesto “A Revolução das Bruxas”, da artista maranhense Nathalia Ferro.
Porque “ninguém vai vingar o roubo da tua alma, o rasgo no teu sexo, a morte da tua cria debaixo do nariz dos teus instintos básicos, os teus feitiços mágicos pra curar o mundo. Então, faça-se, erga-se. Lute, mulher! Porque ser, você já é. E direito ninguém te deu. Foi você quem conquistou!”
Nathalia vem de uma carreira de 14 anos com dois discos lançados, Instante (2013) e Alice Ainda (2015), e a produção desse single foi o modo que encontrou para obter força diante do machismo. É a vivência e a luta diária da mulher ao enfrentar ainda hoje diversas fogueiras simbólicas ligadas à misoginia. É o grito pelo enaltecimento feminino em meio ao fervilhar dos beats eletrônicos.
É a vivência e a luta diária da mulher ao enfrentar ainda hoje diversas fogueiras simbólicas ligadas à misoginia. É o grito pelo enaltecimento feminino em meio ao fervilhar dos beats eletrônicos.
Em entrevista, a compositora explica que “A Revolução das Bruxas” foi inspirada “nas mulheres ancestrais, que entendiam seus ciclos, que não temiam a noite, que gozavam de seu sexo e de seus feitiços, que se sentiam plenas com sua própria natureza e que foram sacrificadas em nome da ordem esdrúxula que nos roubou até o direito de sermos uma pessoa, assim como é um homem.”
Para realizar esse trabalho, a artista contou com uma equipe de produção majoritariamente feminina e expõe que foi um encaixe de espíritos e propósitos. “Senti que foi um momento de cura muito grande, de fortalecimento, reconhecimento e transmutação até da gente ver que arrasa e pronto. E isso ficou pra geral, ficou pra vida, foi a revolução da gente.”
Uma revolução que se ampliará ainda mais com o remix da DJ Érica, dos coletivos independentes de música eletrônica Manga Rosa (RJ) e Mamba Negra (SP), que será divulgado em breve, segundo Ferro.
Confira a íntegra da entrevista com Nathalia Ferro:
ESCOTILHA » Você tem 14 anos de carreira na música. Como foi a tua trajetória até aqui?
Nathalia Ferro » Um processo, como é até hoje. Eu comecei em São Luís com 20 anos e vim para São Paulo com 30. A gente se descobre muito nessa busca, se questiona, se desfaz, se reinventa. Cantei reggae, samba, axé, mpb, rock, tudo, até entender que também podia compor e fazer algo de responsabilidade própria. Em 2013, foi o primeiro disco, em 2015 o segundo. Caminho hoje muito no intuito de uma leveza, acho que o tempo não deve pesar na gente, mas nos ajudar a se despir do fardo das máscaras. Quando comecei a cantar, eu nem sabia que cantava, foram os outros que me disseram, até eu pegar pra mim isso. Eu gostei, mas depois achei que gerava muita expectativa, muita cobrança e muito roubaçao.
Então entendi que posso fazer muita coisa sendo artista. Conviver em paz consigo e com o outro, por exemplo. Saber ouvir. Sacar o erro, aprender e não se identificar mais com ele. Ficar à vontade na maior parte do tempo, mas também atenta e forte. Me importo em me divertir nos palcos e aproveitar pra estar presente, falar das coisas que me atravessam e também aproveitar pra estar mais perto das pessoas. Acho que minha trajetória até aqui foi entender a responsabilidade dessa busca por liberdade e não deixar ela me sabotar.
O seu som nas suas outras produções era mais voltado pro reggae (EP Instante, de 2013 e o disco Alice Ainda, de 2015) e no single “A Revolução das Bruxas”, você traz mais a música eletrônica. Como surgiu essa mudança? Suas próximas músicas vão seguir essa pegada?
Assim como a percussão tradicional, que foi uma coisa com a qual convivi e convivo até hoje – porque São Luís tem muita cultura de tambor -, o eletrônico te pega pela alma, pelo centro, te move, até te atordoa às vezes. Eu achei que essa mensagem tinha que ter algo pulsando nela, uma coisa que acordasse o corpo, mas que fosse subversivo também, e o eletrônico é uma grande invenção da música dos nossos tempos nesse sentido. E, também tá aí pra a gente aproveitar, porque ele pode trazer uma autonomia fantástica pro artista. Me parece um mundo fascinante.
E, falando nisso, você está com algum projeto para um novo disco?
Nesse momento estou aproveitando mais os encontros e parcerias. Vai rolar uma surpresa com a Frimes lá de São Luís. Ela fez os arranjos eletrônicos do meu último show, o selvagem/transcendental, e também foi a responsável por introduzir o lance eletrônico na minha sonoridade. Além disso, tem remix da “Revolução da Bruxas” com a Érica, DJ da Manga Rosa, Mamba Negra e Red Bull. E também estou estudando um projeto novo com dois artistas incríveis de SP, Obá e Yago (Jonatha Cruz e Yago Goya).
O disco que vamos ter na agulha em breve é o do MANA, a parceria autoral que possuo com a Maria Ó, minha companheira maravilhosa.
O videoclipe de “Revolução da Bruxas” foi viabilizado por uma vaquinha online. Como você vê esse processo de contribuição na música independente?
No meu caso, foi a única possibilidade de fazer o clipe honrando o trabalho das artistas que tramparam no projeto. E achei incrível, achei lindo, foi emocionante e também coerente. Temos que incentivar cada vez mais e nos engajar cada vez mais em ajudar os criativos em suas propostas. Não haveria renascimento cultural na Europa sem essa mentalidade. É um dado antigo, meio gasto, mas nos ajudou bastante numa tomada de consciência importante pro que somos hoje. Arte é algo pra se investir, ela se reverte em cultura, bem-estar social, informação, conhecimento, pensamento crítico, prazer. Atende demandas emocionais de todo gênero, desenvolve o ser humano e a sociedade em todas as esferas, pois nos esclarece a visão, nos ajuda a ver, satisfaz o sentimento, alimenta o pensamento.
As fogueiras ainda estão acesas e muitas mulheres se tornam vítimas pela menor ação fora do código de condutas patriarcal vigente. Diante disso, o que significa para você a “Revolução da Bruxas”?
Foi um dos modos que encontrei pra dizer chega, principalmente pra mim mesma. Era de minha responsabilidade não permitir ter a integridade ferida e encontrar meios para cumprir isso. Quando você nasce com uma vagina te enfiam a insígnia do medo. É um pacto cultural, religioso, político e social. Uma mulher dificilmente consegue exercer-se (em sua personalidade, gostos, desejos, feitos) completamente, sem ser perseguida, machucada ou marginalizada. Eu me inspirei nas mulheres ancestrais, que entendiam seus ciclos, que não temiam a noite, que gozavam de seu sexo e de seus feitiços, que se sentiam plenas com sua própria natureza, que foram sacrificadas em nome da ordem esdrúxula que nos roubou até o direito de sermos uma pessoa assim como é um homem. “Ser você já é e direito ninguém te deu”, eu digo. Funcionou bem pra mim e estou feliz que esteja reverberando.
A letra de “A Revolução das Bruxas” é muito forte, entre alguns assuntos fala sobre a repressão do nosso corpo e da nossa sexualidade, enquanto mulheres. Um assunto muito importante, principalmente no contexto atual, visto que estamos lutando pela descriminalização do aborto, pelo direito à nossa vida e ao nosso corpo no Brasil. Como foi o seu processo de composição?
Esse obstáculo que foi posto entre nós e nosso corpo, a insígnia do medo da qual falei, inclusive através de legislação, é tudo um grande absurdo, é como uma sanção cotidiana, e a gente não conhece o crime, mas desconfia de qual seja. Roubar o corpo do domínio das mulheres é entre outras coisas um recurso ideológico de idiotização social. Existe uma parte da vida sexual e criativa da sociedade que está embotada nos corpos das mulheres. Tem muito de inteligência e subversão nos corpos livres para gozar e criar. O sistema não quer isso.
Não dar à mulher o direito de escolher sobre o próprio destino é estratégico para o retrocesso político que está sendo programado pro nosso país. Se as mulheres não estão livres, então não há liberdade, não há devir.
E no processo [de produção do single] fui eu falando pra mim mesma, evocando as bruxas em minha ancestralidade, reacendendo meu fogo interno, afirmando a vida, como se me colocasse pra além dela, maior, muitas, que eu acho que é a força que tá fazendo a gente acordar nesse momento.
Nesse single, inclusive, você faz o uso de uma cantiga folclórica “A menina e a figueira”. Você poderia explicar a relação da cantiga com o contexto da música?
Minha mãe cantava esta canção pra eu dormir. Ela foi colocada quando resolvi gravar porque traduz pra mim um símbolo muito pungente. O jardineiro do patriarcado que corta nossos cabelos, a madrastra falocêntrica, que nos enterra vivas por não protegermos o figo da figueira. A criança oculta que canta pra resistir e ser salva. É como se minha mãe me desse um aviso ainda muito pequena, uma inception muito poderosa e resistente. Muitos anos depois descobri que ela foi colhida pelo pesquisador folclórico Câmara Cascudo, em suas andanças pelos confins do Brasil.
A equipe que realizou a produção e o vídeo do single é composta majoritariamente por mulheres. Como que foi unir todas essas mulheres para falar sobre o enaltecimento feminino?
Foi proposital e natural também. Encaixamos os espíritos e os propósitos na realização desse trabalho. Foram três meses de conversas e dois dias de gravação gostosos e intensíssimos. Senti que foi um momento de cura muito grande, de fortalecimento, reconhecimento e transmutação até da gente ver que arrasa e pronto. E, isso ficou pra geral, ficou pra vida, foi a revolução da gente.
NO RADAR | Nathalia Ferro
Onde: São Luís, MA;
Quando: 2004;
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