Para falar sobre o EP Lusco Fusco, da Cena Paisagem, lançado pelo selo curitibano Onça Discos, é preciso voltar no tempo e entender o momento em que o jazz e o hip hop se cruzaram. Formatado enquanto gênero na década de 1980 e impulsionado por inúmeros lançamentos ao longo da primeira metade da década de 1990, há quem aponte o single “Heebie Jeebies“, do eterno Louis Armstrong, gravado em 1926, como um precursor do estilo, em especial por Armstrong imprimir uma técnica diferenciada à época, incluindo até mesmo improvisações vocais, algo raro mesmo no jazz.
Mas é durante a década de 1980 que veríamos essa união entre jazz e rap ganhar corpo. Músicas como “Jazz Rap“, da banda Cargo, “Talkin’ All That Jazz“, da Stetsasonic, e “Words I Manifest“, da Gang Starr, ficariam marcadas como o início de uma tendência que se fortaleceria com os discos People’s Instinctive Travels and the Panths of Rhythm e o icônico The Low End Theory, ambos da A Tribe Called Quest.
Enquanto a banda do Queens trazia o baixista de jazz Ron Carter, vencedor de dois Grammy Awards, para participar de seus registros, a lenda Miles Davis fazia de seu último álbum, lançado postumamente em 1992, Doo-Bop, a primeira fusão “inversa”, mesclando batidas de hip hop ao seu jazz, além de colaborações importantes como a do produtor Easy Mo Bee. Era o jazz rap atingindo o sucesso no mainstream. De repente, Digable Planets e Us3 também invadiram as rádios e mixtapes com seus discos, Reachin’ (A New Refutation of Time and Space) e Hand on the Torch, respectivamente.
Lusco Fusco acelerou esse jazz lounge, desconectando suas nuances da música ambiente e acrescentando o flow e as batidas do rap contemporâneo.
Atualmente, a fusão entre o jazz e o hip hop é bem comum. Nomes como Thundercat e Kamasi Washington ampliaram esse intercâmbio com o hip hop, fazendo até mesmo que astros do rap como Kendrick Lamar bebam na fonte. Acontece, e aqui entra a Cena Paisagem (Rodrigo Pinto, Kelvin de Souza, Matheus Mantovani, Daniel D’Alessandro e participação de Hudson Müller no sax), que há um distanciamento maior entre o que era feito lá atrás e a fusão de hoje. Não se trata de melhor ou pior, mas de como a música pop evoluiu ao ponto de agregar novos elementos: a música eletrônica, no caso de Kamasi, e o jazz lounge, no caso dos curitibanos.
Lusco Fusco acelerou esse jazz lounge, desconectando suas nuances da música ambiente e acrescentando o flow e as batidas do rap contemporâneo. Além de resultar em um disco inventivo, ele traduz a cidade sem grandes esforços, desnudando as idiossincrasias curitibanas, seus cheiros, barulhos e tons de cinza.
As letras de Rodrigo Pinto concatenam ideias sem privilegiar a construção sonora, ainda que ela seja fator preponderante no estabelecimento desta imagem de Curitiba que salta das notas do sax de Müller em “Lusco Fusco 1” e “Lusco Fusco 2”. Este relato moderno de uma cidade na qual “a fumaça sobe” enquanto as pessoas parecem não se importar com o que acontece (“quem se importa?”). Afinal, “a rima é fogo” e a “neblina tudo embaça”. Não há, necessariamente, o intuito de estabelecer uma crítica, mas, sim, narrar Curitiba num misto de distanciamento e proximidade, o pertencimento à cidade que, volta e meia, nos questionamos.
Neste embate, o grupo é bem-sucedido e ganha pontos ao criar uma ponte entre um gênero marginal e um erudito. Não é que isso já não tenha sido feito anteriormente – e o início deste texto deixa claro; o ponto-chave do trabalho de Rodrigo e companhia é fazer isto no contexto brasileiro e em uma cidade como Curitiba, em que a cena hip hop é a mais forte do país e, ainda assim, há quem considere uma arte menor. Avise esse povo que Miles Davis discordaria disso – e eu também.