Há pouco mais de um mês eu pegava nas mãos um livro que seria incrível para ilustrar esse texto. Ele vinha num box com outros três e trazia, em seu conteúdo, inúmeras histórias da vida de um dos meus escritores favoritos em sua passagem pela França. Entretanto, isso não aconteceu, apesar de Hemingway ter razão ao dar o nome à obra: Paris é uma festa.
Bom, permitam-me explicar. Para quem nunca visitou o país, como é o meu caso, muito do que a França representa é baseado na cultura pop, nos filmes e nos velhos estereótipos do bigodinho levantado, das roupas listradas e o beicinho charmoso ao virar para sua amada e proferir o clássico mon amour. A França é um país festivo, sim, e cheio de glamour e paixão.
Mas por baixo de todo o charme parisiense e das noites românticas a queijo e vinho, dos quais Ernest nos presenteava em sutis descrições, existe um cenário politizado, sombrio e com bandeiras de protestos levantadas, mesmo que poeticamente, vindas do subúrbio clamando, em rimas inteligentes e ritmos alucinantes, sobre os direitos iguais, especialmente de negros e imigrantes.
Se desde sua criação nos Estados Unidos o hip-hop abordou temas raciais e de direitos iguais, assim como no Brasil mostrou a realidade da periferia e das ruas, o estilo, que não poderia ser diferente no Velho Mundo, tem ganhado cada vez mais voz nas ruas da França. E sua escola, além de ser excelente, é dotada de uma riqueza sonora e musical, além de muita esperteza em suas composições.
Esperteza? Pois é. Pode parecer que estou indo fundo demais com essa suposição, mas ao escutar artistas como Black M e Sexion D’Assaut é impossível não pensar que a batida é apenas um background e não um diferencial dessa linda escola. Ela é fundamental para capturar o interesse de quem não entende uma palavra sequer em francês. Parece mesmo um recurso made for gringos.

Basta dar o play em uma track desses artistas e você, mesmo sem entender sobre o que se trata, começa lentamente a bater o pé e mexer a cabeça. O ritmo contagiante, além de extremamente agradável, é interessante porque nos mostra músicas com identidades sonoras bem características. É comum encontrar violinos, corais infantis, misturas de músicas, sons e efeitos, conduzidas por uma pick-up e batidas disco. Sim, disco dos anos 1970.
“O ritmo contagiante, além de extremamente agradável, é interessante porque nos mostra músicas com identidades sonoras bem características.”
As letras também são ótimas. E se falta o idioma fluente no currículo, o tradutor do Google já é o suficiente para você capturar o conceito e as ideias. Com discursos profundos e um sotaque cativante também, o rap francês permite que você ouça horas e horas seguidas de excelentes artistas que mostram uma realidade diferente daquilo que a TV e os guias nos vendem. Em cada letra, há a realidade nua e crua de imigrantes árabes e africanos (especialmente os vindos de colônias francesas) e sua luta diária, muito em virtude do aumento da segregação racial através de políticas nacionalistas extremas que o país viveu nos últimos anos.
Mas claro que, além desta realidade e da politização, algumas músicas acabam tomando outro trilho e indo para temáticas mais sutis e divertidas, assim como suas batidas trocam os scratches e o compasso cru por mixagens mais trabalhadas que bombaram em qualquer festa, assim como a dupla Shin Sekaï.
A verdade nua e crua é que o rap francês não foge – e nem poderia – da alma do gênero e do que ele é ao redor do mundo. Mas assim como o nosso rap cativou o mundo com misturas de elementos do samba e do funk, por exemplo, os franceses fizeram a mesma coisa com estilos únicos, que mistura os elementos da classe e da sofisticação, com o charme das ruas cinzas e grafitadas.

Há muito ainda para nós, tupiniquins, a desbravar sobre a cultura suburbana da França. Mas assim como qualquer gênero em destaque, parte da diversão é ir conhecendo pouco a pouco de sua história através do que é contado em forma de rimas e poemas por artistas como Hocus Pocus, Sinki e Afro Jazz.
E como de costume, da próxima vez que você pensar nos charmes da França, não tenha medo de usar bombeta e moletom. Eles também são muito bem-vindos nas principais ruas da Europa.