São Paulo em dia chuvoso é uma cidade mais calamitosa do que de costume. São Paulo em dia de show do Sleaford Mods é uma cidade em ebulição. A apresentação do duo britânico no penúltimo final de semana, no Carioca Club, foi como manda o figurino. Saliva, aspereza, colapso e caos. E se faltou ser um inferninho mais digno do grupo – e faltou, não por eles ou por deficiência do atendimento do espaço, mas pela escolha de uma casa de show menos propensa à criação de uma atmosfera propícia ao que Jason Williamson e Andrew Fearn fazem –, sobrou energia. E, novamente, saliva.
A noite, que começou com um show competente do trio mineiro Black Pantera, provavelmente uma das maiores bandas de rock da atualidade, terminou em uma catarse coletiva de indies que pareciam ser as “vítimas” perfeitas para o discurso que transita nas entrelinhas das canções do Sleaford Mods. Mas, ao mesmo tempo, deixou claro que a sonoridade dos ingleses não é de fácil digestão.
Em uma indústria acostumada a palcos suntuosos, recheados de equipamentos e parafernálias, dois homens em um local primordialmente preto e vazio empolgam pouco. Uma lástima para quem não capta a essência. Mais do que um barbudo apertando teclas indiscerníveis e saracoteando para lá e para cá, enquanto um homem de estatura mediana e cabelo ralo fica de perfil sem fazer contato visual e faz chover saliva enquanto vocifera (não sem sarcasmo) a frustração com o estado das coisas de um país (entre tantos) com uma massa trabalhadora sufocada, estamos diante de artistas magnéticos. Atentem-se às mensagens. Eu havia premeditado isso neste mesmo espaço menos de um mês atrás.
Chegados de uma apresentação no Niceto, em Buenos Aires, e no Club Chocolate, em Santiago, Williamson e Fearn subiram ao palco pontualmente às 19h15, enquanto água caía do lado de fora. Com a casa, se não cheia, em bom número, seguiram quase o roteiro do que estava sendo feito pela Europa, mas com as extensões que permearam a turnê sul-americana. “UK GRIM”, “Kebab Spider” e “Jolly Fucker” abriram a apresentação que, ao todo, contou com 26 canções.
A dupla parecia um pouco retraída de início, assim como o público – certamente, parte dele sem muito conhecimento sobre a banda, impactada pela singular estranheza daquela dupla despudorada gritando impropérios no mesmo ritmo que as batidas. Williamson tem uma presença de palco que é pouco convidativa, há de se admitir. De lado, sem encarar o público, frequentemente pegando em seus órgãos genitais, fazendo caretas e mexendo na camiseta; ora passando as mãos freneticamente pelos cabelos suados, fazendo jorrar o suor pelo palco e pelo público mais próximo. Quem vê pela primeira vez pode considerar que há, ali, um ser humano no espectro autista. Não cooperava sua visível irritação com os fones de ouvido. Ambos notaram que algo precisava ser feito.
Com a casa, se não cheia, em bom número, seguiram quase o roteiro do que estava sendo feito pela Europa, mas com as extensões que permearam a turnê sul-americana.
Williamson escreveu uma explicação em inglês e colocou para que o Google Tradutor reproduzisse a mensagem. “Meus fones quebraram e eu estou puto” era a síntese do que havia ocorrido. Dali em diante, o gelo foi quebrado. “Tiswas” pareceu ser o divisor de águas para a apresentação, que se viu em uma escalada ininterrupta de tensão. Como em um caldeirão em ebulição, a revolução da classe trabalhadora estava próxima – metaforicamente falando, é claro.
“B.H.S.”, “Stick in a Five and Go” e “Fizzy” abriram caminho para que, logo à frente, o cover de Pet Shop Boys ecoasse pelo Carioca Club. “West End Girls” foi cantando em uníssono, tal qual parte considerável das anteriores já havia sido. E foi então que um transe coletivo ocorreu. “Nudge It”, “Tied Up in Nottz” e “Jobseeker” anteviram algo fruto de um delírio coletivo. “Tweet Tweet Tweet” ao vivo é uma loucura, uma fritura, um derretimento das bases do que formam o capitalismo moderno. É o próprio discurso em desconstrução. Novamente, metaforicamente falando.
O Sleaford Mods não é para todos – uma constatação em nada pedante, pois não parte do duo essa exclusão. Mas é somente a partir do instante em que se compreende as sutilezas do discurso de suas canções que é possível ver além de um barbudo apertando teclas aleatórias de seu notebook, ou de um homem mediano que evita estabelecer contato visual tal qual o diabo evita a cruz. Desfazer a mente para refazer a mente. Parece papo de maluco, mas é só a realidade de um dos grandes shows desse ano.
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