Música é catarse. Arte é algo que vem de dentro como fogo, sem precisar pensar antes, apenas colocar para fora. Se não for para expor o que vem de dentro, não o faça, diria Bukowski. Música é catalisar sentimentos. Escreve quem não consegue falar, quem coloca na letra aquilo que, de outra forma, não falaria. Quem transforma em arte a maior tragédia da vida, faz nascer do ano mais maligno o dia mais bonito, diria Leminski.
Para Nick Cave sempre foi assim. Desde os anos 80 ele é sombrio e melancólico ao cantar sobre amor, morte e violência. Ele sempre transformou em algo belo os sentimentos mais pesados que existem dentro de cada um. Se me perguntarem qual música deve ser tocada em um funeral, direi “Into My Arms”, lançada por ele em 1997. Da voz grossa e potente às vezes usada para cantar com leveza, às vezes pausada para quase declamar canções-poema, às canções produzidas com detalhes de música ambiente, pianos, sintetizadores e um charme que emana da aura de gênio sombrio que Cave carrega.
Mas embora a discografia de Nick Cave seja carregada de momentos fortes, o ano mais maligno ainda não havia acontecido. Em 2015, durante a produção do disco que seria o sucessor do aclamado Push the Sky Away (2013), o filho de 15 anos do músico morreu ao cair de um penhasco. Parte das canções do que viria a ser Skeleton Tree, o décimo sexto disco do Nick Cave and The Bad Seeds, já haviam sido escritas, mas o sentimento do dia 14 de julho de 2015 – e dos dias que vieram depois – transformaram a obra.
É um disco que, em momento algum, trata diretamente sobre a morte do filho e nem se refere a ela, mas lida, através de alegorias, com o sentimento de quem fica e precisar conviver com o fim da linha.
Skeleton Tree é um encontro de Cave com o luto e a morte. É um disco que, em momento algum, trata diretamente sobre a morte do filho e nem se refere a ela, mas lida, através de alegorias, com o sentimento de quem fica e precisar conviver com o fim da linha. “I Need You”, a sexta faixa, é a mais explícita sobre o tema. A primeira escrita após a morte do filho, com um lamento cansado e desesperado de um Nick Cave de voz trêmula.
As oito canções que formam o álbum trazem uma produção minimalista, que ecoa nas duas faixas finais ao criar o momento mais catártico do álbum a partir do canto angelical da soprano dinamarquesa Else Torp. Como um anjo que anuncia a chegada de alguém aos céus, ela abre o caminho para os devaneios finais de Cave, que questiona deuses e sonhos. “They told us our gods would outlive us, but they lied”.
Ao lado do documentário One More Time With Feeling, que acompanha o processo de luto em que a gravação do álbum ocorre, Skeleton Tree é um registro de Nick Cave para ele mesmo e para o seu público. É a maneira dele lidar com a perda e criar algo a partir da dor, ao mesmo tempo em que entrega outra vez um belíssimo disco em sua irretocável carreira. É um trabalho tão bonito e pesado que chega a doer. A voz de Cave em “Girl in Amber” alcança emoções que não ouvia em alguma música há tempos. Beirando os 60 anos de idade, o músico consegue entregar algo que se destaca de toda a sua grandiosa carreira ao conversar com a sua própria vida e a morte. Ao transformar em arte o pior momento da vida. Ao mostrar que música é catarse.