Há quase um mês, a Bloomberg havia dado com exclusividade que o Spotify faria o anúncio de um redesenho em sua plataforma que mudaria a maneira que o público interagiria com a música.
À época, a publicação chamou de um processo de “TikTokização”. Ou seja, seus executivos pretendiam investir em um feed na página inicial com deslizamento vertical, exatamente como na plataforma chinesa. Na tarde de quarta-feira, durante o Stream On do Spotify (semelhante aos eventos de anúncio de lançamentos feitos pela Apple), a informação foi tornada oficialmente pública.
Gustav Söderström, copresidente da empresa, fez uma demonstração, mostrando que a gigante do streaming musical substituiu os antigos carrosséis das listas de reprodução e as recomendações diárias de músicas por um feed interativo vertical, deslizante e baseado em vídeos, que reproduzirão automaticamente prévias de músicas, podcasts e audiolivros (em setembro do ano passado, ela havia lançado uma seção com mais de 300 mil títulos).
De acordo com o executivo, a plataforma passa a borrar as fronteiras de sua atuação, deixando de ser um reprodutor de música, mesclando com elementos do TikTok, do Instagram e do YouTube.
Perfil de assinantes influenciou mudança
Segundo dados da plataforma, desde 2022, um terço dos usuários do streaming possuem entre 18 e 24 anos, e a minoria deles não é assinante. Em uma entrevista concedida a Bloomberg no fim de 2021, o CEO Daniel Ek já havia explicitado que desejava atrais mais jovens para o Spotify.
A mudança não chega a ser de todo uma surpresa. Aos poucos, o Spotify foi acrescentando recursos visuais à plataforma, como vídeo para podcasts e os vídeos em loop para as faixas. As novidades sinalizam que a empresa prestou atenção ao movimento de outras do setor de tecnologia.
O sucesso de serviços como o Discz, uma espécie de Tinder da música, parece ter sinalizado a necessidade de alteração, indicando o desejo crescente das novas gerações por conteúdo interativo. O novo feed investe no engajamento, em esforço semelhante ao que Instagram e YouTube têm feito para competir com o TikTok.
Nos últimos dois anos, a marca direcionou esforços de negócios justamente nesse grupo demográfico. A expansão do segmento de podcasts e o crescente interesse da Geração Z neles fez, por exemplo, que o Spotify contratasse podcasters para projetos exclusivos em diferentes países. No Brasil mesmo, grandes programas, como o Mano a Mano e o Café da Manhã, são produzidos no estúdio da marca ou em parceria com ela.
As alterações divulgadas pela companhia podem causar um impacto a quem utilizar o Spotify como ferramenta de divulgação musical, mas o cenário ainda é incerto. E isso ocorre em um streaming em que o forte nunca foi a descoberta de música. As playlists próprias, sejam separadas por gênero musical ou por região, nunca foram muito assertivas. Como um Google, o conteúdo está lá, mas depende imensamente da proatividade do usuário.
CFO do Spotify defendeu demissões; Public Knowledge pede investigação de contratos e “jabá”
As alterações também acontecem na esteira de cortes realizados pela gigante de tecnologia.
As alterações também acontecem na esteira de cortes realizados pela gigante de tecnologia. Paul Vogel, diretor financeiro do Spotify, chegou a elogiar a redução de 6% da força de trabalho em âmbito mundial.
No anúncio, Vogel também compartilhou que o Spotify vai atingir a marca de US$ 40 bilhões em pagamentos a direitos musicais. De acordo com os dados divulgados, cerca de 70% de cada dólar gerado retorna para músicos, gravadoras, editoras, distribuidoras e produtores de conteúdo. O que não foi dito no discurso do diretor financeiro é que os pagamentos são feitos aos detentores dos direitos autorais primeiro, que raramente são o artista ou compositor.
Por essa razão, cresce o número de artistas que sugerem regulamentação para o serviço, acusando que pequenos músicos não têm sua remuneração aumentada há tempos (atualmente, a empresa paga cerca de US$ 0,003 por execução).
A ONG norte-americana Public Knowledge, que atua na defesa dos direitos do consumidor, divulgou um relatório intitulado “Streaming in the Dark” (leia-o na íntegra, em inglês, aqui), em que expôs áreas da indústria da música que deveriam ser foco de investigação da Federal Trade Commission, autoridade encarregada de regulamentar a livre concorrência no país.
Entre as sugestões, a Public Knowledge defende investigar as configurações modernas do “jabá” (espécie de suborno pago por gravadoras para execução ou promoção de um artista, disco ou música), que afetariam diretamente os pagamentos dos artistas.
Como a remuneração é feita pelo número de execuções, músicos ganham pela quantidade de vezes que suas canções são ouvidas; em um cenário que uma gravadora paga pela promoção de uma faixa, ela pode acabar sendo mais executada do que outras, ganhando mais com isso. Vale ressaltar, ainda, que artistas ganham convites e melhores condições financeiras em festivais motivados pelo número de vezes que suas músicas foram tocadas.
Meredith Rose, autora do estudo, afirmou à Pitchfork que o caso é bastante grave. “É um problema estrutural. […] Se vamos consertar isso, precisamos mudar o sistema para que os incentivos não sejam estruturados como são”, disse. Rose afirma que o “jabá” moderno não é necessariamente monetário, mas vem em favorecimento algorítmico e criação ou inclusão em playlists, por exemplo.
Por essa razão, as alterações divulgadas na quarta-feira pelos executivos do Spotify ligam um alerta. A empresa afirma que suas recomendações impulsionam aproximadamente 50% das execuções de todos os usuários cadastrados na plataforma. O número de streams é cinco vezes maior quando decidem seguir um podcaster ou artista.
O que Gustav Söderström chamou de “conexões significativas e de longo prazo” podem ser, na realidade, um favorecimento algorítmico que funciona como o “jabá” moderno. Ou seja, você pode achar que descobriu um grande artista, mas eles queriam que isso acontecesse.
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