Não poucos anos atrás, baixar música da internet era visto como obra do demônio para os pastores da indústria musical. Gravadoras e artistas selaram pactos na época para combater a pirataria, derrubaram plataformas como o Napster judicialmente e nos mesmos tribunais tentavam a todo custo punir os responsáveis pelos mp3 disponíveis em cada canto da internet.
Na época, até a animação South Park entrou no debate, trazendo a Moop (banda formada por Kyle, Stan e Kenny) como a idealizadora de uma greve até o fim dos downloads, depois de verem artistas tristes por não poderem mais comprar jatinhos particulares ou mesmo ilhas particulares para o seu filho. No final, Stan simplesmente diz que baixar música não era de todo mal, já que aquilo faria mais gente ouvir o som e os artistas poderiam continuar vivendo de seus shows.
Hoje em dia, com o acesso a plataformas de streaming e tantas outras novidades na música, é quase risível quando alguém chega na mesa e fala que baixou alguma música. A facilidade de ouvir suas músicas favoritas a preços baixos em assinatura trouxe de volta o público ouvinte, enquanto a batalha ficou travada pela exclusividade e por onde se lançar.
Eu era adolescente com sonhos de lançar uma banda nessa época. E a empolgação de gravar uma faixa nossa pelo celular e mostrar para os amigos era tão grande, que nunca pensamos se éramos contra ou a favor do download. Apenas queríamos que as pessoas ouvissem e nos apoiassem caso gostassem das demos horríveis.
O fato é que nessa disputa via-se cada vez mais a função da música e de muitos gêneros se tornarem reféns da batalha por contratos, e as cifras eram trocadas por cifrões. Nisso, o aspecto de honestidade e todo o plano de fundo de movimentos e culturas ficaram refém de cláusulas.
Os tempos mudaram e parece que isso trouxe de volta a intenção do que realmente a música significa. E se alguns gêneros musicais não têm feito questão de voltar às origens, o hip-hop hoje merece que todos os chapéus (ou bonés de aba reta) sejam tirados em suas homenagem.
Em 2015, o rapper novaiorquino Torae lançou no Kickstarter a proposta de recolher dinheiro dos fãs para gravar um novo álbum. A descrição era honesta e sincera: “eu quero fazer esse álbum com aqueles que importam mais, que são os fãs. Sem selos e intermediários, apenas eu, a música e os fãs”, foi o recado que ele deixou antes de revelar as rimas de Entitled para o mundo.
Torae juntou o dinheiro dos fãs e debutou na cena do hip-hop com estilo, categoria e com o dedo apontado na cara da indústria. E o seu álbum é bem produzido, bem composto e uma surra de costas de mão na cara das grandes gravadoras.

Seu álbum é bem produzido, bem composto e uma surra de costas de mão na cara das grandes gravadoras.
De volta às batidas clássicas de baixo e bateria mais obscuras e rimas inteligentes, Torae abriu Entitled com “Introview”, satirizando inclusive uma entrevista de emprego (ou seleção de um artista com seu trabalho) para selar o caixão da crítica que fez ao mercado musical que tem deixado a qualidade de lado.
Aliás, buscar a independência tem sido o caminho de muitos artistas saturados com os trâmites, burocracia e intervenção de engravatados. Alguns buscam apenas a ajuda de um produtor de confiança, enquanto outros voltam a selos independentes. Os mais radicais têm feito como Torae e Green Day, produzindo o próprio material e entrando chutando as portas, contando apenas com a multidão de fãs.
De volta a Entitled, Torae parece investir cada centavo arrecadado com responsabilidade e coração. Mesmo que seja um álbum composto e estruturado, soa como uma mixtape caprichosa.

As batidas são constantes e diretamente voltadas à antiga escola do rap. Os vocais suaves e tranquilos deixam toda agressividade para o que realmente é a maior arma do rapper: as rimas. E nisso, somos conduzidos por 15 faixas pós-intro que se completam e se contemplam. Por fim, Entitled é a união da força do artista, fãs e a internet com a essência que o hip-hop buscou desde sua criação.
Torae é um daqueles artistas que vem mais que pela música. Junto com ele, vem uma bagagem de inspiração e uma pequena linda história que faz do seu trabalho algo ainda mais gostoso de acompanhar. E no fim, é isso que separa um artista de um apenas mais um rostinho famoso fazendo playback naquele programa do sábado à tarde.