O ano de 1967 foi sem dúvidas um dos mais prodigiosos em termos de lançamento de álbuns da história da música. Há 50 anos, o mundo ocidental anglo-saxão se sacudia e entrava em colapso com “protestos”, “movimento hippie” “revolução” e “liberdade” sendo parte do cardápio de termos preferidos daquela geração. A Guerra Fria se mantinha firme e forte e já não mais tão fria. Ameaças de ataques nucleares eram proferidas, o Vietnã mergulhava num caos sangrento e jovens do mundo inteiro buscavam paz, conforto e, acima de tudo, liberdade. [highlight color=”yellow”]As artes, e principalmente a música, eram um lugar perfeito para essa energia criativa se aflorar.[/highlight]
Só neste ano, a humanidade teve a oportunidade de se deliciar com lançamentos que foram dos tons psicodélicos de Sgt. Pepper`s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, Surrealistic Pillow, do Jefferson Airplane, e do debute do Pink Floyd, The Piper at the Gates of Dawn, passando pelas também estreias de The Doors e Velvet Underground, o blues pirado de Are You Experienced?, de Jimi Hendrix, o conceitual The Who Sell Out, do The Who, e chegando no fantástico I Never Loved a Man The Way I Love You, de Aretha Franklin. No meio de tudo isso, o supergrupo Cream legava ao mundo seu mais reconhecido trabalho: Disraeli Gears, lançado no Reino Unido exatamente há 50 anos, no dia dois de novembro de 1967.
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[highlight color=”yellow”]O Cream é considerado o primeiro supergrupo do mundo[/highlight], cujos integrantes eram Eric Clapton, Jack Bruce e Ginger Baker. A banda teve uma meteórica carreira no final dos anos 60 e apresentou uma sonoridade bem particular e que casou muito bem com o caldeirão cultural daquela década. Cravados no blues (Clapton já era reconhecido como grande guitarrista de sua geração após trabalhos com o Yardbirds e John Mayall and the Bluesbreakers) e no jazz (Baker e Bruce eram parte da Grahan Bond Organisation, conjunto britânico de rock progressivo e jazz-fusion), o trio começou sua trajetória com expectativa da crítica musical, que aguardava com ansiedade o que poderia sair daquela miscelânea de ritmos e egos que seus integrantes traziam consigo.
A estreia com Fresh Cream ainda em 1966 já dava mostras da qualidade dos três músicos, que apostaram na releitura de alguns clássicos que iam de Robert Johnson a Willie Dixon e em composições próprias. A harmonia de vozes e riffs mais comportados constroem o álbum que ainda tem uma pegada “rock anos 60” pintada com o talento blues de Clapton, a levada jazz de Baker na bateria e a potência vocal de Bruce.
https://www.youtube.com/watch?v=ltNK_ySqrek
A banda teve uma meteórica carreira no final dos anos 60 e apresentou uma sonoridade bem particular e que casou muito bem com o caldeirão cultural daquela década.
Gravado em incríveis quatro dias, Disraeli Gears é o segundo disco de estúdio do Cream e apresenta na capa uma colagem psicodélica – lembrando Revolver, dos Beatles -, que apesar dos coloridos lisérgicos, não se relaciona diretamente com seu conteúdo musical, mais ligado ao blues e a um “pré- hard rock”, com guitarras mais pesadas do que distorcidas.
“Strange Brew” abre os trabalhos de maneira animada e dançante. Aqui os solos de Clapton, que também lidera os vocais, já dão as caras com toda a maestria do “slowhand”. “Sunshine of your Love” é a música mais icônica do Cream. Clássico eterno da década de 1960, a faixa é um rock’n’roll de respeito com uma arrepiante linha crescente de baixo criada por Bruce. A sinergia entre os integrantes e a qualidade do trio como instrumentistas é visível na faixa cantada em conjunto por Clapton e Bruce.
A guitarra “wah-wah”, popularizada na época pelo Cream e também por Jimi Hendrix, aparece na cadenciada “World of Pain”, apresentando, agora sim, um tom mais psicodélico, algo que seria mais recorrente nos dois álbuns subsequentes da banda: Wheels of Fire de, 1968, e Goodbye, de 1969, mas que também está presente na faixa “Swalbr”, onde a enérgica bateria de Baker dá o tom enquanto a animada letra fala de um mundo de cores, arco-íris e devaneios.
Em “Blue Condition”, Ginger Baker aparece surpreendente nos vocais numa faixa bem lamentosa e com a cara dos primórdios do blues, enquanto que “Outside Woman Blues” é uma canção recuperada e modernizada com maestria por Clapton, originalmente gravada pelo bluesman Blind Joe Reynolds, no longínquo 1929. “Mother’s Lament” fecha o álbum de maneira bem humorada, numa curta balada de voz e piano cantada em conjunto pelo trio.
Os 33 minutos do disco apresentam o que o trio tem de melhor: a partir do virtuosismo e da habilidade na tríade sagrada guitarra, baixo e bateria, o Cream navega por diversos ritmos, bebe na fonte do rock psicodélico, cria bases para o hard rock com suas guitarras agressivas, sem assim se descolar das raízes de blues e jazz.
O supergrupo, infelizmente, não foi capaz de continuar na ativa por muito tempo. Os egos e as personalidades fortes de Clapton, Bruce e Baker (desentendimentos entre os dois últimos eram mais do que comuns) falaram mais alto e, dois anos mais tarde, o Cream se separou. Wheels of Fire e Goodbye, os dois álbuns seguintes, mantiveram o conjunto como um dos grandes nomes do cenário do rock’n’roll da época, sem o mesmo impacto de Disraeli Gears, é verdade, mas mostrando ao mundo uma incrível capacidade de realizar performances ao vivo e reafirmando a qualidade do trio como instrumentistas.
Ouça ‘Disraeli Gears’ na íntegra no Spotify
https://open.spotify.com/album/4SMNUQCyTvlO4vFEdXXG45