The Beatles ou Rolling Stones? Pelé ou Maradona? Azul ou Verde? Aécio ou Dilma? Pois é, parece que vivemos em constante necessidade de escolher apenas um. Existe uma característica curiosa no ser humano, e isso vale muito para o brasileiro, que é a obrigação de assumir certos gostos como únicos.
Desta forma, dizer que Transa é um dos melhores discos já feitos na história da música brasileira é exorcizar seu nome para fãs de outros artistas nacionais, neste Fla x Flu em que vivemos. Mas, antes de falar sobre o disco, é necessário introduzir o leitor no contexto em que o torna, em minha opinião, é claro, um dos melhores já feitos em terras tupiniquins.
Caetano Veloso é um dos cânones da música brasileira. Entre amores e ódios, proporcionados em parte por raramente omitir opinião sobre os mais variados temas, Caê imprimiu magistralmente várias nuances da cultura brasileira em sua carreira. Do samba ao axé, passando pelo rock e bossa nova, o baiano de Santo Amaro, exilado desde 1969, em Londres, fez de Transa uma obra ímpar, justamente por agregar universalidade ao som que pretendia fazer. Claro que boa parte do resultado estava relacionado com o movimento tropicalista, que, sob influência de correntes artísticas de vanguarda e cultura pop, misturou elementos tipicamente brasileiros com inovações estéticas extremamente radicais.
Adquiri o LP com 15 anos. Aliás, Transa foi o primeiro bolachão que comprei com dinheiro próprio, juntado na base das sobras dos trocos da padaria. Na época, além dele, comprei também Ópera do Malandro (1979), do Chico Buarque, e Vinicius + Bethânia + Toquinho – En La Fusa (1971), de Vinicius de Moraes, juntamente com Maria Bethânia e Toquinho – este último, confesso, adquirido mais pelo peso de dizer que tinha comigo um LP de Vinicius do que propriamente por conhecer as canções do álbum.
Como a idade era pouca, faltava a mim compreensão do que o disco de Caetano representava verdadeiramente. Ainda estava em processo de entendimento do que havia sido a ditadura para estes artistas nacionais. Exílio era uma frase bonita, até então, e não densa e dolorosa como é hoje. E, não sei definir as razões, mas mantinha Transa escondido em minha casa. À sua maneira, meu pai era fã do músico baiano, e nunca impôs gostos musicais em minha criação – salvo a crítica na fase rebelde, de quem achava muito estranho um jovem passar horas entre Nirvana, Pearl Jam e Alice in Chains.
Ainda estava em processo de entendimento do que havia sido a Ditadura para estes artistas nacionais. Exílio era uma frase bonita, até então, e não densa e dolorosa como é hoje.
A verdade é que Transa e Caetano também viviam isolados em casa. E, assim como aconteceu em 1971, quando o músico obteve do governo brasileiro a permissão para que viesse ao país participar da missa comemorativa aos 40 anos de casamento de seus pais, o LP só entrava em nosso toca discos quando eu estava só.
“You Don’t Know Me”, faixa que abre o álbum, causava uma sensação atordoante em mim. Aquele inglês atravessado com trechos em português, a psicodelia nas linhas melódicas, o violão que marcava o ritmo, as guitarras entoando riffs enigmáticos, tudo me colocava em transe. Eu estava longe de compreender que o nome escolhido por Caê era uma delicada brincadeira entre o ato sexual e um pedido feito pelo governo do Brasil para que o cantor criasse uma canção homenageando a rodovia Transamazônica, que seria inaugurada no ano seguinte.
Jards Macalé era o responsável pelos arranjos de Transa, o mesmo Jards que anos mais tarde me encantaria com a trilha sonora de O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha. Ele e Caetano fizeram um trabalho inesquecível. As faixas que se seguiam, “Nine Out of Ten”, “Triste Bahia” e “It’s a Long Way” só me deixavam ainda mais embasbacado. Como já tocava violão àquela época, arranhava seus complicados acordes bossanovísticos no Del Vecchio que havia surrupiado de meu pai.
Eram apenas 7 músicas. Transa encerrava com “Nostalgia (That’s What Rock’n Roll Is All About)”, canção que lembra um tanto o caminho que os The Beatles trilharam até Revolver. Para um Caetano pós-tropicalista, o álbum ainda deixava claro todas suas raízes. O disco, que completou 45 anos em janeiro deste 2017, me foi roubado 7 anos antes, mas sua capa, com um Caetano Veloso cabeludo, sentado próximo ao microfone, foto em preto e branco, dividida nas proporções 1/3 para 2/3 com o retângulo vermelho que completava a arte, enquanto uma marca da Philips Records, selo da gravadora PolyGram, preenchia a extremidade alta à direita, nunca saiu de minha memória.
45 anos depois, a verdade é que Transa continua um trabalho atualíssimo.
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