Historicamente, o Brasil passou – e passa – por uma série de “décadas perdidas”, atreladas geralmente ao momento econômico. Na linha do tempo do cinema brasileiro, passamos por quase uma década de produções e sonhos engavetados, quando o então presidente Fernando Collor de Melo deu fim à Embrafilme e aos incentivos no setor. Passado o impeachment, em 1993, era criada a Lei do Audiovisual (8.685). Sem ela, não teríamos Carlota Joaquina, de Carla Camurati. Lançado em 1995, foi o marco do cinema da retomada que permitiu que, anos mais tarde, tivéssemos produzido aqui filmes premiados e reconhecidos no mundo, como Cidade de Deus, Tropa de Elite, Que Horas Ela Volta, entre outros inúmeros exemplos. O cinema brasileiro formou uma identidade, e estabeleceu um ritmo constante de produções.
Da mesma forma, a Lei Rouanet permitiu, e permite, que espetáculos e ações de diversos portes aconteçam no país. Parece óbvio, mas não custa lembrar, essa economia cultural gera muitos empregos diretos e indiretos.
Nos últimos tempos – sobretudo na semana passada, com a operação “Boca Livre” da Polícia Federal, que descobriu desvios e o pagamento de um casamento pomposo -, a Rouanet está em pauta. Com as notícias, não tarda surgir o escracho puro e simples, de que a lei “sustenta vagabundo”, ou, que beneficia artistas que, por terem nome e reconhecimento, não precisariam do mecanismo.
O primeiro ponto para se lembrar é que esse tipo de incentivo não existe só no Brasil – vários países do mundo alavancaram a sua produção cultural por conta de mecanismos parecidos. Nem os Estados Unidos, a maior indústria cultural do mundo, produz sem incentivos fiscais.
‘Tem que ralar muito para conseguir verba para começar a ralar. Mas quem está de fora, só vê o valor do cachê’.
Em segundo lugar, ninguém “ganha” milhões de reais como se costuma manchetar na imprensa. De forma bastante resumida, a Lei Rouanet – ou uma lei cultural municipal ou estadual – funciona da seguinte forma: ela permite que o produtor, que tem o seu projeto aprovado depois de um julgamento dessas instâncias (que formam comissões com especialistas em cada área), vá captar a verba necessária para viabilizar seu filme/peça/projeto com empresas que deduzirão esse incentivo do imposto de renda.
E para o seu projeto passar por esse crivo, a seleção não é tão simples. Fui conversar com o especialista no assunto, Felipe Tazzo, que lembra que só a aprovação, correção e apontamentos de um projeto exige um trabalho de cinco meses. “Depois, é preciso ir de patrocinador em patrocinador, com o pires na mão pedindo apoio e só depois conseguir a verba para começar a trabalhar no projeto. Então, tem que ralar muito para conseguir verba para começar a ralar. Mas quem está de fora, só vê o valor do cachê”. E a captação, lembra ele, demora bastante, às vezes, anos. “Feito isso, o projeto tem que andar direito, portanto, vários profissionais serão remunerados. Tem que divulgar, pagar contador, recolher imposto sobre cada despesa”, salienta.
Com uma seleção tão criteriosa, como nos conta Felipe, fica óbvio que houve fraude para que um casamento tenha “passado” nessa avaliação, certo? “Se houve desvio de verba para pagar alguma atividade dentro daquele casamento, ou ele todo, foi feito com alguma criatividade”, crê o especialista. Uma hipótese de como essa aprovação possa ter acontecido, palpita ele, é que o proponente do projeto tenha pedido, por exemplo, uma nota fiscal de uma execução de um show de uma banda que nunca se apresentou via o projeto, e venha a se apresentar no casamento. “Ou, a decoração, foto, vídeo, qualquer um desses itens. Também é possível que o proponente tenha, após contratar os serviços citados para a realização do projeto, pedido que o fornecedor realize mais uma atividade, só que dessa vez no casamento”.
Falhas
Empresa patrocinadora que destina uma fração muito pequena de impostos para projetos é somente um dos problemas da Lei Rouanet – por isso, segundo Tazzo, os incentivos acabam ficando restritos a grandes empresas, que são as que podem patrocinar. “Isso torna o patrocinador muito distante do artista”. Além disso, essa dinâmica também acaba deixando o dinheiro na Região Sudeste – mais especificamente no eixo Rio-São Paulo – que concentra os grandes eventos. “Como faz para patrocinar projetos de cultura pantaneira, se nenhum patrocinador passa pelo Centro Oeste?”, questiona o especialista. Fora isso, o fato de a Rouanet bancar o projeto 100% também é problemático, já que, lembra Tazzo, isso ocorre mesmo se não houver nenhum espectador na plateia.
Mesmo com todas as falhas, a Lei Rouanet já se mostrou essencial. O que precisa ser feito agora é debater reformulações e melhorias, além de tentar fazer um esforço mínimo para entendê-la. Por enquanto, a lei é o alvo preferido dos que criticam todo e qualquer incentivo ou benefício. Basta esperar para saber qual será o próximo da mira.
Entenda a Lei Rouanet em 12 passos
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