Há uma praça no coração da cidade, e nela residem lembranças aos montes. Ali, uma criança com ares de encanto está imóvel diante de um gigante. O gigante grita apesar do eminente silêncio que ecoa de sua desgraça. Ele agoniza ali, no coração do centro da praça, mas longe do peito da cidade que há décadas o mata.
Os olhos da criança se esquecem de enxergar a estupidez, o horror e o desespero. A eles cabem somente a beleza, e ao garoto o encanto de sentir-se pequenino diante daquele monstro vestido de concreto e esquecimento. A criança, paralisada, contempla a glória que outrora por ali reinava, apesar de nem saber que aquele gigante, agora agonizante, foi por muito tempo a própria vida dessa cova improvisada: essa cidadela estraçalhada que o cerca.
A criança insiste! Corre pelas vértebras do bicho. Estanca o sangue, que escorre feito esgoto, com alegria, mas se mantém distante. Ela sonha em percorrer as entranhas obscuras do gigante, dissecar seus segredos mais íntimos. Desbravar sua pele superfície, e suas tripas camarins.
Cadeados, avisos, policiais: as barreiras que separam a criança do gigante parecem intransponíveis. Mas, felizmente, os sonhos desconhecem limites, e a imaginação nos consola quando a realidade oprime, maltrata, proíbe e mata. Sim, o gigante vem sendo assassinado sistematicamente durante décadas. A ele resta apenas esse fim melancólico, ao caríssimo custo da pouca força que ainda encontra, e aquela canção que nos embala pela implosão da existência. Pra isso não há remédio, tão pouco encontrarão culpados para a autoria do fato. O gigante foi condenado pelo descaso. É vítima do maldito abandono. Não tem mais serventia, dá trabalho e custa caro. É só mais um prédio jogado à ação do tempo. Um amontoado de poeira e cimento. Um teatro morto, assassinado. É a nossa própria memória ruindo, nossa história caindo aos pedaços!
O gigantesco, e há décadas moribundo, Centro de Convivência Cultural de Campinas é um portento da arquitetura cênica nacional. O complexo de quatro edifícios, criado por Fábio Moura Penteado, está localizado no bairro do Cambuí, em Campinas, e foi inaugurado em 1976. De lá pra cá, muito tempo se passou e muita coisa também mudou, evidentemente. A bela história do Centro de Convivência, CC para os íntimos, é inegável. Ali, em seu ventre de cimento, ele abriga um teatro interno de quinhentos lugares. Um palco ótimo para se atuar. Uma platéia perfeita onde apreciar o espetáculo. Um vazio sem fim pelas coxias, um silêncio que dói, judia.
Ali, num passado memorável, o teatro viveu a sua glória. Hoje, nesse desprezível presente, vive seu martírio.
Na parte superior, contracenando com a praça e seus freqüentadores, fica o incrível Teatro de Arena, com capacidade para receber até cinco mil pessoas. Ali a cidade aconteceu. Manifestações, shows, espetáculos, garotos de bermuda com garrafas em punho e coragem nos olhos. Quem nunca se perdeu nas curvas de alguém pelos cantos escuros do CC em uma madrugada alcoólica? Ali a juventude se encontra em suas próprias garras, experimenta o lícito e o ilícito através das mãos do acaso e empunha versos em noites de lua cheia. Ali, num passado memorável, o teatro viveu a sua glória. Hoje, nesse desprezível presente, vive seu martírio.
E a quem pode recorrer o gigante? Em seu horizonte a situação é complicada. O grandalhão precisa lidar com o descaso dos homens públicos, a indiferença da população e o silêncio, poucas vezes rompido, dos artistas. Eis aí a base da receita para um assassinato em praça pública!
Entre a incompetência, o mau-caratismo e a impossibilidade; resta apenas essa amarga certeza de que o futuro parece inatingível ao “desmoronante” conjunto arquitetônico. Que pena, gigante. Que pena!
O lastimável estado do CC não é exclusividade da cidade de Campinas, basta correr os olhos pelos cantos desse país em brasas pra perceber que nós também desmoronamos pouco a pouco. Vão ao chão nossas certezas, nossas esperanças e nosso amor próprio. Fazem pó de nosso espírito. Derrubam a nossa paz.
Mais do que o desgaste físico, preocupa-nos a batalha psíquica, e assim o é com os espaços artísticos que outrora estavam abarrotados, e hoje estão lacrados, condenados ao vazio e ao silêncio pelo passar enferrujado do tempo. Afinal, além da evidente destruição física, a tal depreciação do imóvel, cala-nos fundo também a destruição da memória e o desrespeito com a história. Espaços devem ser multiplicados, sempre, e não aniquilados por conta da sede incontrolável que essa gente tem por mastigar cédulas e escarrar vidas.
Para aqueles que esquecem o sonho, os personagens que ali ainda vagam em busca de seus cavalos, e a história das próprias cidades que também são contadas por seu concreto, a morte de um teatro é mera estática. Uma simples derrapada na vida pública.
A eles falta muito. Falta a capacidade de ver que a beleza daquele gigante ainda agonizando tem a capacidade de encantar crianças que por ali passam, a presenciar, sem saber, a sua desgraça. Falta a inocência de sonhar, que foi substituída pelo hábito de somar a qualquer custo. Falta até mesmo uma chama, algo que desperte no coração escavadeira dessa gente aquela pequenez indispensável a todo grande homem. A pequenez de se saber um eterno menino, de olhos encantados, diante da grandiosidade do mundo, dos encantos de seus cantos, e de toda beleza que insiste em permanecer oculta.
Por enquanto, ostentamos apenas olhos cansados e permanecemos condenados à nossa gigantesca miudeza de espírito. E seguimos destruindo tudo, a todo custo. Infelizmente.