A realidade nunca nos bastará ou abastecerá as nossas almas anêmicas. Estamos cansados de saber que essa prima feia da rotina, outra dama horrorosa de nossos dias, serve apenas ao tormento e ao desespero. A danada além de dura na queda tem a cara dos nosso medos e impossibilidades e exige, diariamente, batalhas intraváveis em nome do existir. Vida e realidade misturam-se a ponto de não sabermos mais distingui-las, tal qual o sono e o sonho, e por isso mesmo transformam em fardo o tal presente divino. Afinal, como escreveu o poeta: sentir a vida convalesce e estiola.
Aos olhos da face, coitados, resta apenas essa insossa e cruel realidade. Só enxergam aquilo que existe de fato. Por nossas íris enferrujadas e viciadas passam desapercebidos os detalhes, esses sim detentores de toda beleza e de todo encanto. Quando de olhos abertos, geralmente estamos também de peito fechado. Não reconhecemos o amor que atravessa a esquina entre os passantes, a preguiça escorada embaixo de uma sombra num dia escaldante ou a saudade que envelhece empoeirada no canto morto da estante.
Desde sempre, e até um pouco antes disso, criamos a mania da prova, da crença naquilo que podemos ver ou tocar, e somente nisso. É evidente que em alguns casos é absolutamente necessário esse tipo de compreensão, em outros, no entanto, é completamente criminoso. Acreditar no inexistente, no improvável ou até mesmo no impossível é necessário para que continuemos a perseguir o horizonte. Se falta-nos desejo, falta-nos tudo e acabamos por deixar de lado o encanto em troca de uma vida em branco e preto. Algumas coisas, entre elas obras de artes, não precisam necessariamente existir para que ganhem vida.
Os filmes jamais rodados, os espetáculos nunca apresentados, as telas que intocadas. São incontáveis os casos de obras que, mesmo sem serem realizadas, tornaram-se objetos de fetiche de fãs e críticos. Muitas dessas “não-obras”, inclusive, são objeto de análise de diversas outras obras, essas sim reais. Apesar do reconhecimento pelo “não realizado”, ao artista que tomba diante da impossibilidade de ver acontecer aquilo que desejou o sentimento é sempre de frustração. É triste abandonar um projeto, colocá-lo novamente no vácuo escuro de nossa cachola e seguir adiante. Até porque isso é impossível. Todos aqueles que tentaram sepultar uma ideia sabem que ali, naquele vácuo, ainda pulsa alguma vida apesar do breu e que por isso sempre haverá uma pequena parte daquela mesma ideia em tudo o que faremos dali pra frente. É preciso colocar os sonhos em prática, nem que seja de migalha em migalha.
Fernando narra em suas belíssimas linhas a importância daquilo que não se realiza. Apesar de fazer referência ao teatro, sua grande paixão, o que Peixoto descreve não está restrito às artes do palco.
Sobre esse assunto existe um texto do teatrólogo Fernando Peixoto. Já escrevi por aqui alguns artigos dedicados ao cabra e seu nome é evocado com frequência por essas bandas, o que nos desobriga de quaisquer apresentações. Fernando narra em suas belíssimas linhas a importância daquilo que não se realiza. Apesar de fazer referência ao teatro, sua grande paixão, o que Peixoto descreve não está restrito às artes do palco. É preciso, diz o texto, acreditar na criação mais do que na realização. A criação é solta, é livre e tem “asas de avoá”. A realização não. Essa é dura, tem pés no chão e cara sisuda.
A realidade depende da confluência de vários fatores para acontecer, muitos deles exteriores, afinal operários são operários, estejam nos palcos ou nas fábricas. Se Fernando Peixoto, um dos maiores nomes do teatro nacional, admite que realizou pouco daquilo que pretendia, imagine nós, meros mortais. Mas porque criar independente da realização? Por que perder tempo e saúde, ânimo e energia em algo que não vai acontecer? Porque é preciso.
É preciso acreditar no sonho para que ainda possamos nos manter acordados nesse mundo absurdo. É preciso que retomemos a fé no que não existe. Sonhar espetáculos, poemas e revoltas. Sonhar mundos e mundos novos, mesmo que não possamos colocá-los em prática. Obras inexistem por diversos motivos: impossibilidade financeira, falta de tempo, censura. Causas haverão aos montes, sempre. Não importa! Morrem-se os projetos, acabam-se as verbas ou são proibidos os espetáculos. Mas nunca, jamais, morrem-se as ideias, combustíveis de nossos sonhos e única maneira de derrotarmos o impossível.