O tempo dá conta de tudo nessa vida. Através dele curamos feridas que julgamos incuráveis, processamos traumas e sacrificamos lembranças, levantamos e incendiamos bandeiras, calamos e damos voz a pessoas e personagens.
Resistimos pelo tempo que for necessário e, com a crença nele, seguimos adiante feito bois num matadouro imaginário.
O tempo nos domina e maltrata. Cicatriza a vida pra rasgar a eternidade. O tempo, esse tormento, não é nem mesmo o tempo da alma. Esse, descrente carrasco obsoleto, é o único senhor a quem estamos subordinados, irremediavelmente. Ele corre junto ao vento e não da folga. Tempo não é dinheiro, é direito, e o tempo, infelizmente, mata. Mata feito a faca que cortou a garganta de Holofernes, estraçalha feito bomba atômica que dizima a nossa fé na humanidade.
A sentença do tempo nunca falha, no máximo demora, sempre tortura e, vez ou outra, causa náusea. Pudéssemos crer que todo tempo é agora, e que seria possível correr ao lado dele em busca da imensidão que deixamos escapar outrora.
Tempo passa e não perdoa, tempo tortura e não tem volta. Pois o tempo é também senhor dos palcos e contra isso não tem choro. Ele eterniza e naufraga obras, ele é detentor de toda a nossa vontade. É o mentor de nossos sonhos. O tempo é o maior assassino de todos os tempos, é ele quem sufoca as personagens que insistimos em manter vivas. É ele quem nos ensina a dizer adeus.
O teatro também é filho do tempo e é por ele que vive-se no estado cênico. Tempo pra aquecer, tempo pra descansar. Tempo pra viver e tempo pra ensaiar. Tempo pra esquecer, morto na arara, o antigo figurino que ainda grita. Aquele personagem querido que insiste em cantar.
Tempo pra digerir, tempo pra despedir, tempo, mais do que coragem, pra suportar. Não é tarefa fácil a criação de uma personagem, afinal, não sabemos ao certo, vide fatos históricos, como dar voz e vez ao próprio homem. Se não possuímos nem mesmo a tolerância em nosso inconsciente, imagine a benevolência de doar-se por inteiro a uma presença fantástica.
Todo ator é um cavalo de seus próprios demônios e por eles não passam despercebidos aquilo que fomos, ou somos. Uma personagem carrega sempre um tanto do homem dentro de si. Existem diversas cartilhas e, dentro dessas, diversos modos de lidarmos com uma personagem. A mais celebrada, por conta de ser a mais significante, é, sem dúvidas, o método do mestre russo Constantin Stanislavski.
O ator é um eterno apaixonado pela possibilidade de ser sem se importar. Ali podemos tudo e podemos quando queremos. A personagem, mais do que um trabalho, é uma saída.
Tratamos de sua criação feito um pai trata de um filho: cuidamos de sua mimese e memória afetiva, e, sem perceber, acabamos, quase sempre, diante de uma nova paixão. Apaixona-se não só pela figura, mas pela possibilidade de nos transfigurarmos em sua história. Apaixona-se também pelo seu significado, por sua honra, por sua memória que guarda o nosso passado.
O ator é um eterno apaixonado pela possibilidade de ser sem se importar. Ali podemos tudo e podemos quando queremos. A personagem, mais do que um trabalho, é uma saída. Uma saída para a própria vida. Uma saída que carrega em si todo o universo e toda descrença. Todo ardor e toda insistência. Eis novamente o ator em busca do nada.
Através desse exercício, mantemo-nos vivos, na busca diária por dar voz a uma alma esquecida pelas prateleiras empoeiradas da vida. Cada persona cênica é uma rua de mão única a caminho da eternidade e, por isso, há, por mais que se diga o contrário, a extrema dificuldade em dizer-lhes adeus.
Toda despedida dói, marca a ferro quente a alma, e insiste em manter-se vivente no cotidiano. Toda personagem nos mata aos poucos e é só em seu ventre que poderemos vencer o tempo. Eu, acostumado a não ser inteiro, tenho na tua metade meu próprio desespero e por isso mato-te agora, companheiro, sem remorso, demora ou destempero.
Esfaqueio a mim mesmo. Rasgo-me a carne por conta do ofício. Fuzilo mais um espírito para reafirmar a vida. Assassino minha própria existência em nome do progresso. Sufoco meus desejos por um trocado qualquer.
Só o amor tem hora e, sem mais delongas, é preciso estraçalhar a nossa história para que possamos dar vida a outra tão inglória e insossa. Mastiguei, enfim, um pedaço de mim e o gosto, pasmem, tem aroma e textura desconhecidos. Tornei-me, aos pedaços, um exilado em meu próprio espírito.
Vivo nesse estado somente em nossa gasta memória. Sei que todo choro tem hora, mas agora, e só agora mesmo, chora comigo pela última vez. Tem como? Me devora outra vez!