Pouco mais de 50 quilômetros separam as cidade de Itapira e Mogi Guaçu, no interior do estado de São Paulo. O ir e voltar de um município a outro se dá, geralmente, através da antiga estrada vicinal, atual Rodovia SPI- 177/342, denominada Antônio Joaquim de Moura Andrade. O empresário, pecuarista e fazendeiro que dá nome à via, além de notório cidadão de Brotas, e fundador de Andradina, é conhecido dos brasileiros pela homenagem que recebeu na música “O Rei do Gado”, de Teddy Vieira, famosa por conta da novela global de mesmo nome.
Por conta dessa proximidade, a vida dos habitantes dessas duas cidades está presa a essa caminhada, nesse contínuo ir e vir. Não é raro um trabalhador de Itapira dar expediente em Mogi Guaçu ou vice-versa, de modo que a estrada que liga esses dois municípios é passagem frequente, inundada de gente e de veículos de ambos os lados, todos insistentes e poluentes como regra o mercado. Gente comum, de vida comum. Gente que não possui grandes sonhos ou flertes com a eternidade. Gente como a gente, como dizemos, que apenas vive na esperança de que um dia após o outro lhes possibilite o impossível. Gente simples, que se ocupa de viver e que vive só disso.
Pois era assim, nesse ir e vir da existência polida, que vivam tanto o palhaço de rua Adriano Ribeiro da Silva, quanto o motorista João Clodoaldo Guidini. Viviam assim, sem mais nem menos, até que se encontraram no último dia 9 de maio, uma quarta-feira, na travessa Henriqueta Teodoro de Souza Mendes por volta das 14h. Viviam incógnitos e descontentes os dois diabos, como prisioneiros de suas noites mal dormidas e de sonhos maus sonhados enclausurados pela impossibilidade. Viviam, no passado, afinal, depois do encontro dos dois personagens dessa reportagem-conto de teatro, ambos foram destroçados pelo destino e jazem, tanto um quanto o outro, mortos mesmo que estejam vivos. E a culpa, senhores, é também o nosso legado.
Naquele fatídico dia, João saiu de casa afobado, presume-se. Vestiu sua camisa social branca, de mangas curtas, suas calças negras, que combinavam com os sapatos de mesma cor, e saiu em seu carro recém-comprado, ou velho de guerra: um Toyota Etios, daqueles que valem, segundo a sociedade, um estrago bem feito. Saiu por aí para romper o dia, cumprir suas obrigações e retornar, mais tarde, aos filhos e netos que hoje não podem abraçar o acusado. Saiu por aí, como quem dirige em direção ao seu destino sem remédio ou presságio. Saiu e isso basta.
No mesmo horário, de calça amarela e camiseta vermelha, saiu o palhaço. Ele passou pouca maquiagem no rosto. Sabia que apesar de puxar firme nos sinaleiros teria expediente noturno no picadeiro. Entre a água e o sinal vermelho sempre houve o circo. Sabia que deveria cumprir sua sina, e que por mais mortal que fosse, era dela prisioneiro. Saiu como se saísse pela última vez, mas saiu como um homem. Um homem desde já semi-morto. Não era um bicho, o homem, e disso ele sabia. Não poderia ser estraçalhado no meio-fio do dia, previa. Jamais ficaria desacordado, ao relento, em tom de lamento, previa o palhaço.
Num desvairismo atordoado, injustificável e improvável, Jão, como sempre foi chamado pelos filhos, matou Adriano. O motivo? Um risco, um destino, um detalhe.
Mas a vida prega peças aos que desconhecem a sua rebeldia. Ela judia, maltrata, mata! Se engana quem acredita num destino preenchido pelos fatos: nascer, crescer, envelhecer e ter filhos. Não, não é esse o caso. Há no tempo-espaço um hiato. Há, no destino, um murro seco. Um chute no vácuo. Uma vida. Há todo o desespero da vida que tardia nos pulmões daquele que transcende. E há a vida, fez-se vida: e que colocou diante de um o outro, e diante desse outro o fim da linha. Toda vida se fia ou se finda.
Num desvairismo atordoado, injustificável e improvável, Jão, como sempre foi chamado pelos filhos, matou Adriano. O motivo? Um risco, um destino, um detalhe. O rei da confusão, nesse caso, não trabalhava na construção de Gil ou de Chico. Era um motorista tranquilo, querido, que diante de um risco fez da sua vida turbilhão. Um pequeno tormento pro carro, uma vida desperdiçada pra João. O rei do fandango, Adriano, caiu semi-morto, absorto em sua sina de assassinado. Pobre Adriano, pobre João. Dois filhos arrebentados pelo acaso, duas vidas que se encontraram sobre o nada da existência. Dois corpos estendidos no chão. Em vez de um rosto, uma foto. No lugar do gol, um pecado e uma praga dizendo que ninguém, ninguém mesmo, sairia dessa santificado. Deu-se o dia sem camelôs, sem churrasco e sem porta-bandeiras. Não era sexta-feira, e diante do caso, ao invés de praga, rogaram rezas. É João matou Adriano.
João matou Adriano e o que resta pra nós, pobres humanos, não a certeza de justiça, e sim um futuro de desencantos, cordões falsificados, vidas destruídas e muito, mas muito perfume barato com cheiro de morte. E somos todos coitados diante do assombro. E somos todos filhos do abandono. Diante do afobo: tá lá mais um corpo estendido no chão. E a culpa? A culpa, te juro, nem sei se é tão de João. A culpa, por mais que doa, é sempre nossa. É da poeira. É sempre culpa dessa nação de idiotas que chamamos de irmãos.