A figura pálida cruzava mais uma vez, como fazia quase diariamente, a frente do Teatro Anchieta, no Sesc Consolação. Vinha andando calmo, cadenciado por um passo despreocupado e arrastando os sapatos que sustentavam aquele corpo magro e longilíneo. Era ele. Caminhava em minha direção enquanto apertava os dedos de uma das mãos com a palma da outra. Tinha dedos esguios, e as mãos manchadas como as de minha avó.
Passamos um ao lado do outro. Ele gigantesco, do alto de sua história e de sua importância. Eu duríssimo, assustado e conseguindo reprimir a tempo o ímpeto de cumprimenta-lo. Ele estava ereto, como se sustentado por um fio invisível levado ao oco do céu por pássaros ou qualquer outra coisa que tivesse asas. Eu estava gelado, com o arrepio correndo na espinha feito um gato assustado e perdido. Não cruzamos os olhares, mas passamos com simpatia um pelo outro. Eu, como todo mundo, o considerava um gênio. Ele, evidentemente, não me conhecia. Nunca conheceu. Alguns passos adiante, ainda engessado pelo susto, virei-me com cuidado para ter a certeza absoluta do fato: era mesmo ele. Era Antunes Filho.
José Alves Antunes Filho (1929 – 2019) nasceu no bairro do Bela Vista, o famoso Bixiga, no ano de 1929, e é considerado, merecidamente, como um dos maiores nomes do teatro brasileiro. Iniciou sua carreira em 1952 como assistente de direção do Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, e desde então dedicou sua existência ao ofício do teatro. Trabalhador incansável da cena, Antunes Filho, como era conhecido, foi responsável por montagens antológicas das artes cênicas nacionais como Macunaíma, de Mario de Andrade, Veredas da Salvação, de Jorge Andrade, e A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna.
Diretor exigente e pesquisador disciplinado, criou um método próprio de atuação e foi um desbravador precioso da voz e do corpo para o ator. Dedicou-se em tempo integral a pensar, realizar e a manter vivo e combativo o teatro paulistano. Antunes foi um homem de lutas. E lutou muito, e lutou sempre, até que no último dia 02 de maio o peito do homem ao invés de ar encheu-se foi logo de borboletas, não por cansaço, mas porque o descanso é devido a todos os guerreiros, até mesmo àqueles que são, como ele, invencíveis e de uma maneira ou de outra viverão para sempre.
No início era o Teatrão
Aqueles que passam pela Rua Major Diogo, na altura do número 315, podem não perceber ou saber que caminham pela história do teatro brasileiro. Durante muito tempo foi impossível não notar o cadáver do TBC ali, fechado, pregado no asfalto quente feito um monumento a nos lembrar diariamente da estupidez dos nossos governantes que insistem em tentar apagar a nossa história e negar a nossa cultura. Se o prédio ainda hoje cheira a éter por conta do descaso de gestões abomináveis em termos culturais, a história faz justiça à importância do Teatro Brasileiro de Comédia e sua gente. Foi ali, nas calçadas da Major Diogo, que tudo começou para Antunes Filho.
Depois de desistir do curso de direito, deixando pra trás o desejado Largo São Francisco, e de uma rápida passagem pelos tele-teatros da extinta TV Tupi, o ex-universitário foi convidado por Décio de Almeida Prado para trabalhar como assistente de direção no TBC. Ali conviveu com nomes que influenciaram toda a sua geração como Ziembinski, Adolfo Celi, Luciano Salce, Roggero Jabbi e Flaminio Bollini. Estreou em 1953 com a peça Weekend, de Noel Coward, e por lá ficou até o ano de 1958 quando funda o Pequeno Teatro de Comédia, dirigindo o espetáculo O diário de Anne Frank, ganhando prêmios da Associação Paulista dos Críticos de Artes (APCA) e da Associação Carioca de Críticos teatrais (ACCT).
Antunes fez parte da chamada primeira geração de encenadores brasileiros ao lado de grandes nomes como Antônio Abujamra, Augusto Boal, Amir Haddad, Flávio Rangel e José Celso Martinez Côrrea. Se o TBC influenciou, de uma maneira ou de outra, toda essa geração, é também uníssono nos primeiros encenadores brasileiros o desejo de ruptura com o chamado “teatrão” produzido pelo Teatro Brasileiro de Comédia. Cada um desses encenadores, à sua maneira, nega a herança impostada e rígida do Teatro de madame importado “dazoropa” e busca um teatro genuinamente brasileiro.
Antunes Filho passa, então, desde essa época, a pesquisar sobre o corpo e a voz do ator, e de alguma maneira já rascunha seu método mesmo sem a intenção de criá-lo. Em 1964, monta a aclamada Vereda da Salvação, de Jorge Furtado, mas é só em 1978 que o diretor alcança a síntese do que seria até os dias atuais sua ideia de teatro. Com Macunaíma, de Mario de Andrade, Antunes Filho chega de fato a um novo tipo de espetáculo e de direção, criando inclusive uma nova concepção de dramaturgia cênica. A peça é até hoje considerada sua obra-prima e desde então batiza o nome do grupo que tem o mestre à frente.
O homem que tirou o ator do poleiro
Com Macunaíma, de Mario de Andrade, Antunes Filho chega de fato a um novo tipo de espetáculo e de direção, criando inclusive uma nova concepção de dramaturgia cênica. A peça é até hoje considerada sua obra-prima e desde então batiza o nome do grupo que tem o mestre à frente.
Tão importante quantos as montagens de Antunes Filho é o seu trabalho de pesquisa a respeito do ofício do ator. Segundo o próprio diretor, no documentário O teatro segundo Antunes Filho, a criação de seu método próprio surge da necessidade. Era preciso, já que “não acredito em teatro sem atores”, desenvolver exercícios para desconstruir o corpo do ator, tirando-lhe os vícios dos gestos cotidianos, arrebentando as couraças e correntes que nos impõe a realidade opressora.
Avesso à ideia de “vestir a personagem”, o diretor defende um ator racional, ciente de sua condição de atuador. Através do método, o encenador criou o Centro de Pesquisa Teatral, uma das maiores referências em formação cênica e grupo permanente de teatro. Exigente e disciplinado ao extremo, Antunes Filho cultivou fama por seus ensaios intermináveis e pela paixão que o movia e fez com que, mesmo aos 89 anos, fosse um dos mais ativos e inquietos nomes do teatro mundial.
Antunes fez do palco devoção, dedicou-se inteiramente ao teatro, e, se posso dizer algo com certeza mesmo sem conhecê-lo, é que o homem teve em toda sua vida um único deus: o ator. Foi ao ator, a esse ofício tão ingrato quanto fascinante, que o diretor dedicou todas as horas do seu dia, todos os dias de sua vida. Apesar de seu encantamento, do sumiço do corpo, Antunes Filho jamais morrerá.
Por mais que não o vejamos, ele continuará a cruzar diariamente a frente do Teatro Anchieta como fazia quase diariamente. Ainda apertará suas mãos, manchadas como as de minha avó, enquanto caminha calmamente na penumbra. Sim, todos os atores ficaram órfãos com a partida de Antunes, mas sua obra e sua pesquisa permanecem, como também permanece a certeza de que o teatro brasileiro deve muito, quase tudo, a esse gigante que nos ensinou que a imaginação também tem importância social, e que o teatro pode sim mudar o mundo.