No exato momento em que esse artigo é redigido, a Alemanha trava uma batalha em nome de sua cultura e em defesa da liberdade artística. Nos últimos meses, a AFD (Alternativa para Alemanha, partido populista de extrema-direita) iniciou uma ofensiva contra artistas, grupos e espaços artísticos em Berlim, capital do país. A principal batalha do partido seria, segundo membros, travada para cortar o orçamento de três teatros “impopulares”, que na visão da AFD produzem lixo ao invés de arte. A régua dessa turma? A ordem, a moral, os bons costumes, o respeito às obras e à verdadeira “cultura alemã”, leia-se a “nossa cultura”.
Como sempre, essa turma impõe essa “lei” aos outros, não a eles próprios, evidentemente. Além de atos e discursos em defesa da perseguição e da censura, simpatizantes das causas, e dos crimes cometidos pela AFD, tornaram-se agentes de censura movidos pelo ódio e pela estupidez. Não são raros os casos em que apresentações foram interrompidas de maneira violenta, ao som de palavras de ordem, e artistas tiveram de defender, no corpo a corpo, o seu direito de criação e manifestação; a sua liberdade artística.
Ulrich Khuon, presidente da Deutsches Bühnenverein, organização que representa 430 teatros, companhias de teatro, balé e ópera da Alemanha, comentou um dos casos como “um assalto violento: gritos, intervenções, tentativas de agressão. Nós temos que lutar contra isso, temos de deixar claro o quão perigoso é o que está acontecendo”. A situação, fora de controle, fez com que a Deutscher Bühnenverein distribuísse folhetos com dicas para lidar com o tal “Kulturkampf von rechts”. A preocupação dos alemães é justificável. Segundo o Senador Klaus Lederer, em países como a Hungria e a Polônia, dominados por uma direita popular e mão de ferro, é possível ver “como uma sociedade antes aberta vem a se tornar estreita, fechada”.
O quiproquó germânico não é caso isolado no mundo, infelizmente. Num outro exemplo recente, Miri Regev, conservadora convicta e Ministra de Cultura e Esporte de Israel, criou a tal Lei de Lealdade Cultural, sobre a qual escreverei em artigo em ocasião oportuna. Por hora basta dizer que a lei permite que ministros controlem as artes e cortem financiamentos, vetando repasse de verba, a todo e qualquer grupo que desrespeite a bandeira, incite o racismo ou a violência, ou ainda “tente subverter Israel como Estado judeu e democrático”. Um horror, sim, mas não existe novidade no ataque.
Se analisarmos a história da arte, junto à história do próprio homem, veremos que durante os séculos a cultura sempre enfrentou os mesmos fantasmas. De Adolf Hitler a Josef Stálin, de Papa Doc a Videla, passando por Pinochet, Hussein e Amin Dada, citando apenas ditadores recentes, o ataque à cultura independe da escolha ideológica do cretino que a oprime. É preciso dizer, também, que não apenas os ditadores, todos eles genocidas, se dão ao luxo de atentar contra a liberdade artística e, consequentemente, contra a cultura. Nos últimos meses, por exemplo, assistimos em diversas ocasiões ofensivas do tipo. Os responsáveis são tão diversos quanto as mentiras que contam para justificar seus atos.
De Adolf Hitler a Josef Stálin, de Papa Doc a Videla, passando por Pinochet, Hussein e Amin Dada, citando apenas ditadores recentes, o ataque à cultura independe da escolha ideológica do cretino que a oprime.
Líderes religiosos, políticos, empresários e até mesmo artistas levantam a voz e exigem a suspensão desse ou daquele espetáculo, a condenação, seja ela moral ou criminal, de artistas e o fechamento de exposições e espaços destinados à cultura. Não é preciso dizer que o público, compreenda-se população, deixa-se levar, na maioria das vezes pela admiração, e acaba por andar de acordo com a vontade do senhor da vez, endossando todo tipo de absurdo em nome de uma moral completamente imoral e até mesmo criminosa, afinal a liberdade é, quase sempre, defendida através de leis mundo a fora.
Por aqui, bravas terras tupiniquins, a coisa segue no mesmo ritmo e tom. O presidente Jair Bolsonaro sempre demonstrou antipatia a todo tipo de conhecimento, arte e bom senso. Seus discursos, sempre curtos e mal articulados, soam como uma ode à ignorância e à truculência, por isso não é de se espantar que presidente, asseclas e eleitores encontrem na cultura um inimigo de peso, e por isso mesmo a ataquem sistematicamente. Se à época do pleito Jair apenas acenava que, caso eleito, “reformularia” as leis culturais no Brasil, após sua eleição o atentado à cultura nacional, e à liberdade artística, ficou claríssimo e a guerra foi declarada.
Assim que assumiu o cargo, cumpriu o que prometera e extinguiu o Ministério da Cultura, que junto aos Ministérios do Esporte e do Desenvolvimento Social faz parta de um único, denominado “Ministério da Cidadania”. O responsável pela pasta, Osmar Terra, citado e investigado na Operação Lava-Jato, admitiu que não sabe nada sobre o tema. Quando perguntado a respeito, o ministro fanfarrão respondeu, entre gargalhadas, que a ligação que tinha com a cultura era “tocar berimbau”, mostrando que a estupidez e a falta de preparo são condições imprescindíveis para fazer parte do time de um também estúpido e despreparado Capitão.
Recentemente, o deputado Alexandre Frota se pronunciou a respeito de um possível “pente fino” nos projetos financiados via Lei Rouanet. O histerismo do troglodita foi provocado pela repercussão do discurso, oportuno, de Wagner Moura no Festival de Berlim (Berlinale), quando da exibição de seu longa-metragem Marighella, cinebiografia do poeta, ex-deputado e guerrilheiro Carlos Marighella, assassinado pela ditadura militar em 1969. Falando a respeito de mecanismos e leis que desconhece, movido pelo ódio e não pelo conhecimento, Frota bradou que os artistas “de esquerda” devem estar preparados, deixando claro que há, por parte de governo e aliados, a clara intenção de perseguir artistas que discordem, ou denunciem, suas ideias absurdas de cultura.
Como disse, não é de hoje que a cultura paga pelos crimes que não cometeu. Ela, essa tal de cultura, tadinha, vive entre a cruz e a espada; com o pescoço abraçado pela áspera corda da moral e a têmpora sempre no caminho das balas dos homens de bem, estejam eles fardados ou não. Desvalorizada e desacreditada, vive desorientada entre a realidade e o sonho, entre o desejo e a impossibilidade, e geralmente só acorda na base do safanão; coisa de hábito. Arrancando forças não se sabe donde, a cultura resiste, e resistirá sempre, mas está cansada de pagar pelos crimes que não cometeu, enojada de viver entre a cruz e a espada.
É preciso que artistas, público e produtores unam-se, acima de tudo. Existe, por óbvio, um inimigo comum a ser derrotado, e só conseguiremos a vitória se estivermos juntos. É preciso não cair na garra dessa gente. É preciso não acreditar num bom-mocismo que serve apenas ao inimigo, transformando-nos em nossos próprios censores, fazendo com que patrulhemos uns aos outros, fragmentando aquilo que é um único bloco, afinal estamos todos do mesmo lado.
O artista, nos dias atuais, precisa livrar-se de si mesmo, explodir esse conceito de arte voltada para o ego, esquecer essa mania de arte-umbigo criada por uma sociedade burguesa que idolatra seus bobos da corte. A criação só é possível se o espírito estiver ardendo, em chamas, no fogo das paixões revolucionárias. A cultura sobrevive, sim, sempre, mas anda cansada de ser considerada nada, justamente por saber que há muito tempo ela é tudo. Tudo aquilo que nos resta de humanidade, de sonho e de futuro.