Um padre sobe uma serra rochosa montado no lombo de seu cavalo. O cenário é a cidade mineira de São Gonçalo do Rio das Pedras, distrito do Serro. Lá no alto, o Padre continua seu caminho e, ao chegar à cidade isolada, é observado por uma moça debruçada na janela. Em 1966, o ator Paulo José aparecia pela primeira vez nas telas do cinema na sequência inicial do filme O Padre e a Moça, em uma atuação que lhe rendeu o Prêmio Saci de melhor ator daquele ano.
O hoje clássico do Cinema Novo, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, é baseado em um poema brilhante de Drummond sobre a história de um padre forasteiro e da paixão impossível entre ele e a moça da janela. A atuação precisa e impressionante de Paulo José lhe rendeu prêmios e elogios, além de mostrar pra todo o Brasil, e para mundo, o rosto daquele que anos depois seria considerado por muitos como o maior ator de sua geração.
Paulo José foi gigante, e isso não se deu apenas pelo seu inegável talento ou extensa filmografia, mas, sim, pela paixão explícita, gritante, que sempre carregou e fez questão de demonstrar sobre o ofício que aprendeu a chamar de amor. Quarta-feira, aos 84 anos, o ator nos deixou, levando consigo um pedaço significativo do teatro, do cinema e da televisão brasileira.
Nascido no munícipio de Lavras do Sul, Paulo José Gómez, ou Paulo José, como ficou conhecido, foi o único ator que transitou, ressignificou e dignificou tudo quanto é corrente estética, modismo popular, tendência artística ou qualquer outra coisa que surgiu após a sua existência.
Foi criador e nome ativo do saudoso Teatro de Equipe, ao lado de nomes como Paulo Cesar Pereio, Lilian Lemmertz, Itala Nandi e Fernando Peixoto; protagonista da experiência teatral mais interessante da qual esse país teve notícia, o maravilhoso Teatro de Arena; além de ser uma espécie de personificação do cinema nacional e figura constante na televisão.
Sempre magnífico, Paulo fez da compulsão sua aliada, coisa rara, e da generosidade a forma mais intensa e definitiva de se criar, atuar e viver em nome de uma causa. Na década de 1970, por exemplo, lutou pela regulamentação da profissão de ator, de artista, e transformou em trovão sua voz em tom de reinvindicação, exigindo direitos, exercitando a revolta e fazendo da sua figura uma espécie de porta-voz do futuro.
Em mais de sessenta anos de carreira, Paulo José fez mais de vinte novelas, centenas de peças e quase cinquenta filmes.
Sempre moderno, transitou por novas experiências, dirigindo e roterizando, fazendo da sua própria vida a tragédia e a beleza do palco, da lente e do acaso. Foi Macunaíma quando branco, Shazan enquanto engraçado, Celso Rezende enquanto fogo, Gregório enquanto Sampa, Silvio Proença enquanto nu. Narrou o portentoso Ilha das Flores, deu vida ao lendário Quincas Berro D’Água do gênio Amado. Esteve Puro Sangue, palhaço nato, e Policarpo Quaresma quando gênio brasileiro.
Em mais de sessenta anos de carreira, Paulo José fez mais de vinte novelas, centenas de peças e quase cinquenta filmes. Se existe no Brasil alguma figura capaz de condensar e representar o significado da atuação, essa pessoa é ele. E sempre será, afinal, é preciso tratar nossos heróis no tempo presente e Paulo é um dos maiores deles.
Indiferente ao passado, Fernando Pessoa escreveu certa vez que o impossível já nasce vitorioso. Tal qual o impossível, Paulo José se despede de um país em lágrimas montado no lombo da vitória, afinal, é impossível esquecer ou tentar viver sem sua graça, compreensão e leveza. Que os céus se abram em festas, e os anjos, barrocos como ele, toquem trombetas para recebê-lo.
Obrigado por tanto, José. A festa continua em nome e memória de tua grandeza.