É preciso gritar! Gritar enquanto for possível, gritar pelo simples direito de poder levar a vida no berro. Torquato Neto disse certa vez que quem não se arrisca não pode berrar, por isso, diante dos dias turvos que se instalam pouco a pouco em terras tupiniquins, é preciso ter fé no exercício ruidoso do brado. É preciso enfrentar o horror a plenos pulmões, mesmo no risco!
De todas as formas inventadas pelos poderosos para oprimir e dominar, sejam elas legais ou não, a mais eficiente talvez seja aquela que se impõe através da “sistematização do silenciar”. Pouco a pouco, muitas vezes através da força, o silêncio se instala feito praga pelas esquinas. Um povo sentenciado ao silêncio é um povo condenado à passividade. E a falta de voz em muitos casos acaba por levar à perda da fé na palavra.
Assim, quietos, caminham os pobres diabos pela existência, mudos diante do horror que os consome feito doença incurável. “Pelo número de ditaduras ainda existentes no mundo, parece mesmo que a maior aspiração do povo é a liberdade de se deixar mandar”. A máxima de Millôr ecoa novamente pelo inconsciente do Brasil. Parece não haver saída para o destino que se alinha ao nosso futuro. É fato que a nação está absolutamente fragmentada, dividida entre medos e assombros, mapeando seus caminhos através do desespero. Todos estão à deriva nesse bravo mar de incertezas, e é exatamente nesses momentos de aflição que perde-se o rumo do barco.
Depois de uma sucessão desastrosa de anúncios imorais em relação aos direitos que julgávamos inatingíveis, perdemos recentemente inclusive o direito de levantar a voz contra os abusos que nos atingem cotidianamente. Na base da força ou da proibição, o silêncio avança com seu véu de censura, impondo-se ora através da porrada ora através da lei.
Nos últimos dias, tivemos dois exemplos claros dessa violência: a prisão de estudantes que ocupavam suas escolas contra medidas obscenas anunciadas pelo governo, estudantes que foram também vítimas de uma milícia liderada pelo movimento MBL, e a prisão do ator Caio Martinez Pacheco em pleno exercício de seu ofício.
A prisão arbitrária de Caio e a significação dessa detenção no atual cenário político nacional são os temas da coluna dessa semana.
Perseguição, violência e censura em Santos
A Trupe Olho da Rua estreou o espetáculo Blitz – O Império que Nunca Dorme em Setembro do ano passado. Na ocasião, a peça foi contemplada pelo PROAC e cumpriu as apresentações estabelecidas sem maiores problemas. Se por um lado a trupe enfrenta discordâncias políticas e aparelhamentos burocráticos em casa, por conta de uma ocupação artística que já dura mais de um ano e meio, e resiste na cidade de Santos a contra gosto de muitos homens públicos, por outro é fato que de todas as apresentações de Blitz poucas enfrentaram resistência nas outras cidades nas quais foi encenada. Segundo os próprios atores, houve até algum estranhamento com a ordem nas cidades de Araraquara e São Paulo, mas nada que possa ser comparado ao que aconteceu domingo passado, dia 30, na Praça dos Andradas.
Enquanto membros do Olho da Rua tentavam proteger seus equipamentos, o ator teve prisão decretada e foi algemado ali, no exercício de seu ofício e no direito de sua liberdade de expressão enquanto artista.
O espetáculo já havia começado quando a movimentação policial teve início. Ali, em praça pública, a Trupe Olho da Rua encenava uma obra que criticava o autoritarismo do Estado quando foi violentamente interrompida por soldados, alguns deles armados, que tentavam “apreender” o material cênico e os equipamentos da Trupe sem maiores informações. A acusação? Primeiramente falou-se em desacato e desrespeito com os símbolos nacionais, no entanto, uma voz fardada anunciava o real motivo ao fundo: “o espetáculo é um desrespeito ao país”.
O ator e diretor do espetáculo, Caio Martinez, recusou-se, junto ao grupo, a acatar a proibição. Enquanto membros do Olho da Rua tentavam proteger seus equipamentos, o ator teve prisão decretada e foi algemado ali, no exercício de seu ofício e no direito de sua liberdade de expressão enquanto artista.
Segundo Caio, com quem conversei na segunda-feira, a ação foi completamente arbitrária. “Fui algemado e conduzido à delegacia para prestar depoimento sem qualquer tipo de acusação aceitável”. Sim, por incrível que pareça, policiais acharam-se no direito de, sem explicações, interromperem um espetáculo através da força física e da ameaça e efetuarem a prisão de um ator, assim: sem mais nem menos. E no caso da cidade de Santos, a coisa é ainda pior, já que segundo Caio “aconteceram mais de cinco ocorrências ligadas a artistas no cumprimento de sua função na cidade nos últimos tempos. Acreditamos que fazer essa peça, nesses termos, representa acima de tudo a defesa da liberdade, ainda mais diante da atual conjuntura nacional de quebra da legalidade. Até mesmo um decreto lei exigindo autorização prévia para apresentações foi colocado em prática”, conta o ator e diretor.
Como bem definiu Martinez depois de sua prisão, citando o imprescindível Bertolt Brecht: a cadela do fascismo assombra novamente nossos palcos.
Repercussão do caso
Como era de se esperar a truculência policial não passou despercebida pela classe artística. Por todos os cantos do país, ecoaram gritos em defesa da liberdade, condenando a ação dos policiais e corroborando o sentimento de vigilância em relação à censura, fantasma que ainda carregamos preso na garganta e que nos causa calafrios sempre que evocado.
A atriz e jornalista Marina Franco, por exemplo, considera que a prisão do ator “demonstra perfeitamente o momento de trevas que estamos vivendo no Brasil. Um governo deposto ilegitimamente, eleições garantindo o poder para governantes cada vez mais retrógrados e cerceadores, aumento da truculência gratuita da PM. Intolerância sexual, religiosa e social. Tempos de trevas, sem precedentes, e parece que este é só o começo”.
Ivam Cabral, ator, diretor, dramaturgo e fundador da companhia Os Satyros, acredita que o episódio é assustador. Segundo ele “não estamos (e nunca estaremos) preparados para as arbitrariedades”. “Tenho absoluta certeza de que se tratou de um caso de arbitrariedade, de abuso de poder também. A arte trabalha justamente no sentido oposto ao da ‘ordem’. Cabe a nós, artistas – no terreno das ideias, é claro – desestruturar as bases, as certezas, as conveniências. Trabalhamos no sentido contrário sempre. É nossa função. Não tem meio termo”, comentou.
A crescente intolerância, inclusive por parte dos instrumentos de repressão do Estado, também causa espanto a Cabral. “A intolerância é algo que assusta demais. Estive muitas vezes em Cuba, por longos períodos, inclusive. Lá, por exemplo, não se pode falar de muitas coisas. Mas no teatro, pode. Essa compreensão de que o teatro trabalha num terreno de absoluta liberdade é sensacional. E estamos falando de um regime fechado, onde muitos temas são considerados tabus. O teatro basta para que o que não cabe no mundo possa ser confrontado. Então, não faz sentido algum que se coloquem mordaças nas bocas dos artistas. Não e não. Nada fundamenta, nada explica, nada justifica”, afirma.
Ainda segundo o dramaturgo, corrobora o estado de tensão a visão deturpada que parcelas da população têm da prática artística. “Assusta mais pensar que esta atitude dos policiais que impediram a apresentação do grupo em Santos é aplaudida pela sociedade. Porque nós, artistas, sempre fomos tratados como os vagabundos pela sociedade. Lembremos dos rumores da Lei Rouanet, por exemplo. Todo mundo dizendo que nós, artistas, éramos parasitas da sociedade, que estávamos vilipendiando dinheiro público, etc e etc. Acho, antes, que, ao não investirmos na educação, criamos uma sociedade arbitrária, higienista. Paremos de colocar a culpa no Estado e prestemos atenção em nós. Na Praça Roosevelt, por exemplo, não é o poder público o nosso algoz. São os síndicos dos prédios, os presidentes de associações de moradores que colocam terror no nosso trabalho”, sentencia.
Além disso, Cabral acredita que o episódio reafirma o incômodo que o teatro causa por conta de seu poder de transformação da sociedade. “O teatro amedronta. Porque o teatro é um espelho, reflete a nossa humanidade (ou a falta dela). Nos palcos, estão refletidas as nossas escolas, as nossas ruas, os nossos lares. E toda a população desses lugares, portanto. Os filhos, os sobrinhos, os vizinhos daqueles policiais de Santos estavam naquela arena, naquele domingo em Santos. E isso amedronta, desestruturou, não coube nas almas daqueles policiais”.
Marina e Ivam são apenas dois exemplos das diversas manifestações que condenaram o abuso policial. Na maioria dos casos, o temor, o medo, e a certeza da ausência de um diálogo com o Estado foram destacados. Fora isso, é inegável o paralelo com os anos de chumbo que muitos desses artistas viveram na nossa história recente.
De volta ao grito, é evidente que não podemos nos calar a respeito do ocorrido. Cada artista, não só aqueles ligados ao teatro, tem o dever de defender com unhas e dentes o direito de criação livre de amarras, o direito de apresentação livre de algemas e o direito de vivermos livres do medo. O silêncio diante do horror é conivência. É preciso sim, mais do que nunca, gritar.
Afinal, não existe negociação com censores, existe apenas o enfrentamento e a resistência.