Há, sem dúvida, muito para se falar sobre Catatau, romance-ideia de Paulo Leminski, lançado em 1975. A obra, cuja origem é um conto, de 1968, chamado Descartes com Lentes*, se apresenta como um pólo do qual podem se ramificar muitas outras discussões: as leituras podem ser feitas por lentes estéticas, sociais, políticas, literárias, etc, em diálogo ou não. A questão da linguagem, seus limites e usos, é a mais evidente e também a mais largamente discutida e analisada – também aqui, torna-se o tema desta breve análise de Catatau – A Justa Razão Aqui Delira.
O próprio Leminski registrou em anotações** a relação entre a obra e uma possível transcendência, diretamente ligada às questões da linguagem. Ele refere-se, especificamente, às relações possíveis entre a capa e a contracapa da primeira edição de seu livro, e aquilo que indicam as palavras em seu interior. Ele diz: “Transcendência – Molduras tiram o Catatau do monopólio de um código (o verbal), projetando-o na desnorteante aventura contemporânea da pluricodificação (multimídias: mensagens intersemióticas, pan-semióticas).”
É a partir de uma hipótese histórica que o romance se estrutura: a vinda de René Descartes ao Brasil durante o domínio holandês no século XVII aproxima Renatus Cartesius dos mistérios existentes nos trópicos. A espera de Cartesius por Artyschewsky, narrada em primeira pessoa, acontece enquanto o ambiente tropical tenta ser compreendido e é “dilatada pelas intervenções semióticas do monstro Occam” – figura importante à peça que, inclusive, é tema de um material entregue ao espectador que apresenta o uso do texto Cânone de Occam na pesquisa de criptodramaturgia, metodologia presente no trabalho.
Outro material impresso entregue ao público chama-se “Quinze pontos nos is” – uma lista que apresenta quinze considerações sobre Catatau. Há dois pontos que gostaria de destacar: os itens 6 e 10:
“6. Catatau procura captar, ao vivo, o processo da língua portuguesa operando. E mostrar como, no interior da lógica todo-poderosa, esconde-se uma inautenticidade: a lógica não é limpa, como pretende à Europa, desde Aristóteles. A lógica deles, aqui, é uma farsa, uma impostura. O catatau quer lançar bases de lógica nova.
10. Catatau é um texto em mutação: um mutante”.
A língua, quando ensinada e apreendida, nunca é transmitida com neutralidade. A apreensão de uma linguagem requer o domínio de uma técnica, de uma lógica. As palavras e as formas de utilizá-las carregam uma porção de significados, a língua é capaz de apresentar a moralidade, a concepção de mundo e o pensamento de um grupo. A repetição de uma palavra indica que o seu significado é o seu uso – a palavra tratada como uma convenção aliada às formas de vida. Os caminhos existentes na criação/enunciação de um termo, seus efeitos e suas consequências, considerando a recepção, são inúmeros e dificilmente podem ser medidos logicamente. Porque tratam-se de seres falantes, culturais. Tratam-se de seres mutantes que, a todo momento, re-significam o ambiente que os circunda e as formas de experienciá-lo.
A montagem, ao revelar figuras que se movem entre a visão cartesiana e a visão transcendente, parece se atentar às subjetividades que não cabem na palavra, embora no mundo exista a predominância de tudo ser explicado por elas.
A peça, dirigida por Octavio Camargo, com Claudete Pereira Jorge, Chiris Gomes e Helena Portela no elenco, tensiona questões que envolvem o uso da língua e da linguagem, e o quanto isso dita o conhecimento, o aprendizado e as visões/concepções das coisas e do mundo. O europeu nos trópicos, a lógica adentrando o visceral, o desejo “evoluído” de colonizar o “primitivo”, são temáticas abordadas. Nomear, categorizar e identificar são, nesse processo, atos “indispensáveis” e “necessários”. A verdade precisa ser provada – o mistério precisa se tornar ciência. O ato de reduzir parece ser o caminho “natural” para se conhecer, entender e compreender: é preciso fazer caber em palavras, em páginas, em livros o mundo, incluído aí o “eu” – material tão discursivo e narrativo como qualquer outro.
A montagem, ao revelar figuras que se movem entre a visão cartesiana e a visão transcendente, parece se atentar às subjetividades que não cabem na palavra, embora no mundo exista a predominância de tudo ser explicado por elas. Se todas as coisas ditas, escritas e explicadas parecem não conseguir abarcar toda a potencialidade do que nelas não cabe, como sobre-viver, então?
O teatro surge, assim, como a possibilidade de comunicação em que se é possível quebrar e criticar as tradições, tudo o que se repete a fim de tornar regular e ordenado o que poderia se apresentar enquanto “surpresa”. Não porque, necessariamente, apresente jeitos inovadores, mas porque dá espaço para encadear o silêncio, o sensorial e experimentações com a língua e com a linguagem (material do qual Leminski usa e des-usa), de maneira com que a proximidade e a efemeridade fazem do mundo algo a ser experienciado, ainda que estejamos sentados em nossas poltronas. Um espaço que nós habitamos com o desejo de continuamente desconstruir discursos, ainda que deles munidos.
(As questões propostas se apresentam bastante abrangentes e abrem espaço para a discussão até mesmo do papel da crítica de arte: por que escrever sobre? Por que transpor? Por que indicar compreensões? Por que com essas palavras e com esses formatos? Por quê?)
*A Companhia Brasileira de Teatro tem um trabalho homônimo, monólogo de Nadja Naira.
**O material referido pode ser acessado nos anexos deste trabalho.