O Bairro do Bom Retiro, assim como a cidade de São Paulo, reinventou-se através do tempo e tatuou em sua epiderme cinzenta as formas da modernidade. O mundo inteiro cabe naquele chão batido do centro: portugueses, turcos, sírios, libaneses, judeus ortodoxos, italianos, bolivianos, chinas e coreanos, todos lutando por um uma migalha da vida nessa terra hospitaleira, repleta de história e prédios culturais.
Ali estão a Pinacoteca, o Museu de Arte Sacra, a Sala São Paulo, o Museu da Língua Portuguesa, a Estação da Luz, o TAIB (Teatro Alternativo Israelita Brasileiro) e o Teatro Popular União e Olho Vivo, também conhecido como TUOV. Como se vê, o Bom Retiro é uma das preciosidades de São Paulo, por isso é preciso preservar seus prédios e suas histórias, além de ocupar suas ruas em defesa de sua vida.
Por conta de sua importância e beleza diversos projetos são desenvolvidos na região atualmente. São projetos sociais, urbanos, arquitetônicos, artísticos. Dentre eles, um nos interessa mais, por motivos óbvios: a Ocupação Artística da sede do Teatro Popular União e Olho Vivo.
A ocupação
Com o intuito de fomentar o teatro na cidade de São Paulo, e principalmente na região do Bom Retiro, o TUOV abriu as portas de sua sede para uma grande ocupação artística. A cada mês, um grupo teatral apresenta uma peça de seu repertório que dialogue não só com o TUOV, mas também com seu espaço, o bairro e a cidade.
O projeto teve início no mês de maio e o primeiro grupo a se apresentar foi a Trupe Lona Preta, com o espetáculo O concerto da Lona Preta. Nesse mês, no dia 17, quem dá as honras na sede do grupo é a Companhia Antropofágica, com o espetáculo Entre a Coroa e o Vampiro – Terror e Miséria no Novo Mundo – Parte II: O império.
A ocupação faz parte do projeto TUOV 52, que propõe uma série de ações artísticas promovidas pelo grupo no Bom Retiro, entre elas a estreia do espetáculo Bom Retiro Meu Amor Ópera Samba. A programação é uma homenagem ao bairro que acolhe o teatro desde 1952 e que se confunde com a própria trajetória do grupo na busca por um “teatro pensado e destinado à população residente não apenas nas periferias, mas em toda a cidade”.
Terror e Miséria no Novo Mundo
A trylogia (assim mesmo, com “y” ao invés de “i”) sobre o Brasil iniciada em 2009 pela Companhia Antropofágica é baseada no livro Pau-Brasil, do poeta modernista e canibal Oswald de Andrade. Composta em três partes, como o nome denuncia, a primeira delas, Estação Paraíso, retrata a Colônia Brasileira com paródias e dados historiográficos do processo de colonização e suas implicações sociais. A segunda parte, que será apresentada na próxima semana na sede do TUOV, O Império, foi concebida em 2011 e retrata o Império Brasileiro.
Também recheado de paródias e baseado em dados historiográficos, o grupo enfatiza que, para essa segunda parte, houve uma profunda pesquisa audiovisual. Cenas foram filmadas para serem projetadas junto aos atores no palco, por exemplo. Programas televisivos sensacionalistas, charlatanices religiosas, chantagens. Além disso, a ficção científica serve de inspiração para contar parte da dominação do Brasil. Seres hiperbólicos, monstros, guerras desconhecidas. Está tudo ali, em cena, amarrado por uma dramaturgia própria, delicada e impactante.
Umas das vozes mais ruidosas e inquietas do teatro brasileiro, toda obra da Companhia Antropofágica é uma tentativa, na maior parte do tempo bem-sucedida, de compreender o Brasil.
A terceira e última parte da trylogia, Autópsia da República, estreou em 2012. Em cena, a República brasileira, seus inúmeros presidentes, marechais ou civis, as diversas batalhas travadas em nome de Deus e do Diabo, campanhas eleitorais e até o markenting. Tudo no caldeirão da companhia.
As partes, apesar de formarem uma única obra, podem ser vistas aleatoriamente, de modo que aqueles que não conhecem o trabalho da Companhia Antropofágica, ou os que conhecem mas não assistiram a nenhuma das partes de Terror e Miséria no Novo Mundo, podem acompanhar tranquilamente a apresentação que acontecerá no domingo próximo, sem medo de ficar boiando.
Umas das vozes mais ruidosas e inquietas do teatro brasileiro, toda obra da Companhia Antropofágica é uma tentativa, na maior parte do tempo bem-sucedida, de compreender o Brasil. Com um trabalho incansável de pesquisa, seja de estéticas, filmes, livros ou qualquer inspiração que contribua para o trabalho, a Antropofágica é a prova de que o teatro de resistência e poesia anda vivo e muito bem no país.
O TUOV
Augusto Boal, gênio inconteste das ribaltas, declarou certa vez que o Teatro Popular União e Olho Vivo é um dos mais importantes coletivos de teatro popular das Américas e do mundo. Difícil discordar do criador do teatro do Oprimido por dois motivos. O primeiro deles é a figura do próprio teatrólogo: Augusto Boal é, sem sombra de dúvidas, referência mundial quando o assunto é teatro e suas opiniões e previsões, assim como seus métodos e espetáculos, têm peso de ouro e precisão cirúrgica.
Evidente que como todo ser humano, Boal também errou, mas em matéria de teatro, se o fez, foi de maneira bissexta, e esses erros, que confesso não saber apontar dentro da biografia do cabra, são infinitamente menores do que seus acertos. Augusto Boal é daquelas entidades que sempre tem razão, mesmo que não a tenha. A segunda causa de nossa concordância com o diretor do Arena é a própria história do TUOV. Cravado há 52 anos no Bom Retiro, bairro que ajudou a definir, o grupo segue com o mesmo fôlego da juventude, trocando experiências com as comunidades populares e grupos de teatro, na busca por contribuir e transformar a cidade de São Paulo através das Artes Cênicas.
Seja em ruas, praças, escolas, igrejas, clubes esportivos, campos de várzea ou até mesmo em teatros, o trabalho do TUOV é referência nacional e internacional quando o assunto é resistência teatral. Com passagem por mais de 20 países entre América, Europa e África, o União e Olho Vivo recebeu os mais importantes prêmios mundo afora por suas montagens e suas peças foram vistas por mais de 4 milhões de pessoas.
Uma curiosidade é que alguns dos atores do grupo estão na ativa desde sua fundação, como Neriney Moreira e Idibal Pivetta, nome verdadeiro do diretor da companhia conhecido como César Vieira. César, ou Idibal, é advogado e exerceu militância intensa no período da ditadura militar, em defesa de perseguidos políticos e em memória dos desaparecidos do regime militar. O Teatro Popular União e Olho Vivo é isso: um teatro em luta perene em defesa da liberdade em toda a sua pluralidade e beleza.
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SERVIÇO | Ocupação Teatral na Sede do TUOV recebe a Companhia Antropofágica de Teatro
Que: Entre a Coroa e o Vampiro – Terror e Miséria no Novo Mundo – Parte II: O Império;
Onde: Teatro Popular União e Olho Vivo | R. Newton Prado, 766, Bom Retiro – São Paulo/SP;
Quando: 17 de junho, domingo, às 19h;
Quanto: Entrada gratuita.
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